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Conjugando Educação em Saúde e Educação para a Morte

No documento ANGELA MORAIS DA SILVA (páginas 46-52)

PARTE I – MORTE E EDUCAÇÃO

2. No que consiste a Educação para a Morte?

2.1 Conjugando Educação em Saúde e Educação para a Morte

A interlocução entre educação e saúde abre caminhos para uma infinidade de reflexões. Dentre as possibilidades de se pensar esta relação, no presente estudo, propõe-se introduzir a educação para a morte como um desdobramento possível da educação em saúde, cuja disponibilidade e efetividade podem contribuir para o pleno exercício da cidadania.

Do confronto diário com tal limitação e inabilidade de pacientes, familiares e profissionais, a temática em questão apresenta-se relevante e pertinente, à medida que resgata a morte do anonimato em que a Modernidade a relegou e lhe reinscreve como fenômeno natural, inerente a todos os seres vivos e, por isso mesmo, passível de significações e ressignificações saudáveis.

A despeito das aparentes diferenças e distâncias, é possível conjugar Educação em Saúde e Educação para a Morte nos mesmos objetivos de instigar reflexões e senso crítico, bem como favorecer a autonomia do ser-cidadão. Numa realidade complexa e plural, onde o humano facilmente se dissipa em relações, cada vez mais artificiais e superficiais, permitir o

afloramento das limitações e fragilidades humanas serve para acionar mecanismos de enfrentamento saudáveis, racionais e eficazes.

No curso da história das civilizações, como via de organização da vida em sociedade, o ser humano foi desenvolvendo consensos, pautados em valores e princípios construídos social e subjetivamente. Tais consensos traduzem-se nas noções de direitos e deveres aos quais todos os integrantes de uma dada sociedade estão e são sujeitos. No rol dos direitos que historicamente norteiam a vida social, situa-se a educação e todas as suas possibilidades de exequibilidade.

Na realidade ocidental, em especial na realidade brasileira, a educação é explicitada como um direito fundamental, legitimado por legislações específicas. O direito social à educação, constitucionalmente previsto, pressupõe que tal educação se direcione para a libertação, para a emancipação e para a priorização do pleno desenvolvimento do ser humano (RIVA, 2008). Nesse sentido, a educação se abre como um campo multifacetado que serve de base constituinte e essencial de diversas áreas e subáreas, incluindo a saúde. Assim, reconhecer sua importância e exportá-la para outros campos de práticas sociais nos quais seja possível desenvolver ações educativas significa possibilitar a instrumentalização, análise e reflexão para um efetivo exercício da cidadania.

Produto e produtora de um longo e inesgotável processo de aculturamento, a educação abrange a potencialização de faculdades humanas – psíquicas, físicas, morais, intelectuais. “[...] educação significa constituir a condição humana, num processo de construção cultural e social”. (BITTAR, 2006, p. 12)

Nessa perspectiva, os envolvidos num processo educativo são tomados como sujeitos dotados de razão, com capacidade de reflexão e de crítica e, dessa maneira, podem integrar a vida social ativamente, num exercício de empoderamento e autonomia. Assim, como assinala Riva (2008, p.43): “O indivíduo precisa exercitar o direito fundamental à educação para exercer plenamente a cidadania”. Entendendo-se, aqui, cidadania como o vigor da liberdade e da dignidade humana, traduzida, sobretudo, na interação com outros seres humanos, com os quais se pode estabelecer trocas solidárias e enriquecedoras.

Ferreira (2007) defende que a relação educação-direitos humanos implica, necessariamente, na convergência de diversos saberes, que oferecem também diversas possibilidades de fazer. Assim, a interlocução entre diferentes áreas do saber resulta em variadas metodologias para ações educativas inovadoras, humanizadas e humanizadoras. Dessa forma, a educação em direitos humanos deve se orientar para a “[...] capacidade de

sensibilizar e humanizar, muito mais pela própria metodologia do que pelo conteúdo abordado”. (RIVA, 2008, p.51)

Essa sensibilidade resgata valores humanos essenciais ao projeto de uma sociedade mais justa e mais fraterna e se dirige sempre para a mudança cultural. Para tanto, a educação em direitos humanos deve ser concebida como um processo, um continuum, na forma de uma educação continuada e permanente que visa provocar transformações endógenas que, depois, se complexificam e se traduzem em possibilidade de transformação da realidade. Tomada dessa forma, “educador” e “educando” aprendem, se reconhecem como parte da mesma matéria, subvertendo, assim, a dinâmica milenar de mera transmissão de conhecimentos pelo educador ao educando, até então tido como receptor passivo desse suposto saber. Trata-se de uma construção coletiva, pautada em princípios éticos, que amplia as possibilidades de vir-a- ser para todos os envolvidos no processo.

Ainda em consonância com Riva (2008), a transversalidade de temas e esse modo peculiar de fazer educativo levam à formação de indivíduos críticos e autocríticos, responsáveis, participativos e autônomos. Visto por essa ótica:

O ser humano possui como característica fundamental a vocação de produzir conhecimento e, através dele, organizar-se em sociedade, transformar a natureza e construir uma cultura, qualidade que o distingue dos demais seres vivos. A realização dessa vocação só se efetiva por meio da educação em sentido amplo, dentro de um processo que se estende por toda a existência humana. (RIVA, 2008, p.72)

É possível conjugar educação e direitos humanos nos mais diversos contextos educativos, desde que se preconize o modus operandi que lhe é inerente. Dessa maneira, parece legítimo realizar uma aproximação entre educação em saúde e educação em direitos humanos, tendo em vista que a saúde, assim como a educação, representa um direito social fundamental.

O encontro entre educação e saúde tem sido tradicionalmente marcado pela problematização de questões relacionadas ao processo saúde-doença com base em práticas educativas prescritivas, herança do ideário higienista e sanitarista (na saúde) e de um modelo tradicional na educação. De acordo com Gazzinelli et al (2005), tais práticas historicamente se caracterizaram por seu caráter coercitivo e normativo, focado na mudança de comportamentos individuais. Essa postura, entretanto, parece desconsiderar “[...] que no processo educativo se lida com histórias de vida, com conjunto de crenças e valores e com a própria subjetividade do sujeito”. (GAZZINELLI et al, 2005 p.201)

Por mais que no âmbito das práticas ainda sejam sutis as transformações, a literatura contemporânea aponta mudanças significativas a nível teórico da Educação em Saúde. (GAZZINELLI et al, 2005; RANGEL & PETRY, 2007; MEYER et al, 2006; CECCIM, 2005). O novo discurso preconiza a superação do caráter instrumental e utilitarista que as intervenções de Educação em Saúde têm tradicionalmente incorporado.

O atual cenário em que emergem as novidades teóricas caracteriza-se por uma nova ação pedagógico-metodológica, a partir da qual a relação ensino-aprendizagem traduz-se numa troca horizontal, igualitária e solidária, transcendendo a quaisquer formas de hierarquização e poder. Nessa concepção, o educador em saúde reconhece-se como sujeito e objeto do processo educativo e, dessa maneira, reconhece o educando como ser livre e autônomo, detentor de hábitos e estilos de vida, de uma história singular e dotado de potencialidades, bem como considera eventuais limitações e as determinações sociais a que está sujeito o educando. Assim, o conhecimento empírico que o educando traz de suas experiências cotidianas é respeitado, valorizado e considerado no processo educativo, à medida que é facultado aos envolvidos constantes e frequentes ressignificações.

Há uma postura de aprendiz de ambos os lados e há na realidade possibilidades de trocas no processo educativo, (...) uma rede de solidariedade entre educadores e educandos, na qual buscam-se o compartilhamento e o desenvolvimento de potencialidades na tentativa de ultrapassar limites e dificuldades, outorgando autonomia aos sujeitos envolvidos. (GAZZINELLI et al, 2005, p.203-204)

Vista desse modo, a Educação em Saúde configura uma construção coletiva e compartilhada de conhecimentos acerca dos aspectos relacionados à saúde. Segundo Rangel e Petry (2007), o foco passa a ser a busca pela melhoria da qualidade de vida e pela garantia da cidadania, através do desenvolvimento da consciência.

Como assinala Meyer et al (2006), são muitos e diversos os fatores que influenciam e determinam as práticas em saúde, sendo bastante difícil dimensioná-las no âmbito do processo educativo. Portanto, é também bastante pretensa a ideia de que seja possível “ensinar” modos de vida “saudáveis”, sem considerar a infinidade de variáveis que circundam cada ser em si, especialmente as percepções desses aspectos a partir da ótica de cada um. Todo conhecimento advindo da experiência dos “educandos” tem muito a dizer sobre as formas de significar e de perceber saúde e doença, daí a importância de considera-lo em toda sua abrangência e particularidade.

Assim, a educação em saúde, como parte de um processo de educação mais amplo, passa a ser entendida tanto como uma instância importante de construção e veiculação de conhecimentos e práticas relacionados aos modos como cada cultura concebe o viver de forma saudável e o processo saúde/doença quanto como uma instância de produção de sujeitos e identidades sociais. (MEYER et al, 2006, p.1338)

Rangel e Petry (2007) creditam à saúde uma centralidade salutar na dimensão política da prática educativa. Assim como a educação, o direito à saúde também é condição para o exercício pleno da cidadania.

Até o presente momento discorreu-se sobre as especificidades da Educação em Saúde, enquanto área do saber e campo de fazeres. Partindo de uma realidade concreta de vivência hospitalar, que desafia, instiga e intriga, cabe aqui indagar sobre a possibilidade de filiação da chamada Educação para a Morte no arcabouço teórico-metodológico da Educação em Saúde. À primeira vista, a temática parece marginal, à medida que confronta a finalidade da Educação em Saúde, direcionada para a resolução ou minimização de problemas de saúde e para o prolongamento da vida. Dessa maneira, a morte expressa o sucumbir da saúde, a finitude propriamente.

Nas palavras de Incontri e Santos (2011, p.79):

O termo educação para a morte e, portanto, para a vida, refere-se a uma variedade de atividades educacionais e experiências relacionadas à morte e abrange temas fundamentais, como os significados e atitudes em relação à morte, aprendizado sobre emoções e sentimentos, questões existenciais e espirituais, os processos de morte e luto, e cuidados para as pessoas afetadas pela morte. A educação para a morte é baseada na crença de que as atitudes e práticas de negar, desafiar e evitar a morte, vistas na cultura brasileira, podem ser transformadas e assume que os indivíduos e instituições serão mais capazes de lidar com as práticas relacionados com a morte como resultado de esforços educacionais.

Na realidade hospitalar, a morte afeta os diferentes atores, de diferentes maneiras e, por isso mesmo, as ações em educação para a morte devem ser planejadas de acordo com o público a que se destina: pacientes em estágio terminal, familiares enlutados ou em vias de perda do ente querido e/ou profissionais de saúde. Independentemente da frente em que se está trabalhando, cabe ao educador propiciar espaços para a problematização da morte, individualmente ou em grupo.

A relação entre educação e direitos humanos, anteriormente explicitada, parece encontrar ressonância também no campo da educação em saúde e, mais especificamente, na educação para a morte. A partir de uma concepção mais ampla de saúde, na qual se preconiza

a qualidade de vida em todas as suas dimensões, ter a possibilidade de expressar sentimentos e emoções diante da morte, oferece ao ser humano a atribuição de novos sentidos para a experiência assim como um melhor enfrentamento da finitude.

No ambiente hospitalar: a) ao ser que vivencia o processo de morrer, uma abordagem em educação para a morte possibilita a elaboração psíquica, a externalização de temores e angústias e a acolhida humanizada de suas aflições; b) aos familiares e profissionais, ações de educação para a morte fornecem subsídios para uma relação mais saudável com a própria finitude, bem como os instrumentaliza para melhor acolher os sentimentos de quem vivencia o processo de morrer.

Portanto, parece pertinente reconhecer a educação para a morte como um dos tantos caminhos para o exercício da cidadania, uma vez que conclama a ampliação das consciências, resultando em seres mais humanizados, sensíveis, responsáveis e solidários. O contato – direto ou indireto – com a morte possibilita o desenvolvimento dessas e de outras virtudes, evidenciando o potencial que a morte tem de despertar para a vida e para o eminentemente humano, para o que nos caracteriza como integrantes da mesma espécie e de uma mesma ordem cultural.

Nesse sentido, destaca-se a necessidade de investir em novas formas de pensar as intervenções em saúde. É possível situar a educação para a morte como uma importante e significativa via para a melhoria da qualidade de vida, seja dos pacientes em processo de morrer, dos familiares sobreviventes ou dos profissionais que lidam cotidianamente com a morte. Para tanto, parte-se do reconhecimento da saúde – num sentido amplo – como direito público e da educação como dimensão política para sua devida efetivação na vida social. (MEYER et al, 2006; RANGEL & PETRY, 2007)

Problematizar o tema em questão suscita inquietações, não só existenciais, mas também técnicas, teóricas e metodológicas. Importar esse tema-tabu do exílio em que foi posto pela Modernidade e trazê-lo aos campos da educação e da saúde não é tarefa fácil, ao passo que representa um desafio constante para todos os que se dispuserem a esse empreendimento.

Por mais que possa parecer paradoxal, a filiação da Educação para a Morte à Educação em Saúde se mostra viável e pertinente, à medida que se considere que: a) tanto uma quanto a outra se situam no campo educativo; b) a morte está frequentemente presente em diversos serviços de saúde, apesar dos esforços para evita-la; c) a concepção ampla de saúde, para além do bem-estar físico abrange a dimensão da qualidade de vida que, por sua vez, é condicionada pelo exercício da cidadania. Assim, urge a preocupação com a manutenção da saúde mental de todos os que mantêm contato próximo e/ou frequente com a morte, a saber, pessoas em

processo de morrer, familiares que perderam ou que se encontram em vias de perder um ente e profissionais de saúde, com destaque para os trabalhadores das instituições hospitalares. Instrumentalizados por projetos efetivos de educação para a morte, esses últimos atores podem oferecer condições mais dignas e humanizadas de morrer aos primeiros.

Como ressaltam Incontri e Santos (2011, p.79), no que concerne à proposta de Educação para a Morte:

Não há fórmula de como lidar com situações de morte. O importante é que as pessoas estejam preparadas emocionalmente para isso, visto que a morte pode ocorrer em qualquer momento de nossas vidas. [...] É preciso priorizar a formação integral que [...] deve ser interdisciplinar, multissensorial,

afetiva e plural. Por interdisciplinar, entendemos que deve integrar as mais

diversas áreas do conhecimento num todo orgânico e significativo; por multissensorial, entendemos que devemos trabalhar ideias e conceitos através de estímulos táteis, sensíveis, que mexam com todos os sentidos; por afetiva, entendemos que toda a educação deve necessariamente e em primeiro lugar, passar pela emoção e, por fim, plural, porque devemos tratar de todos os temas, sob as mais diferentes perspectivas e não nos fecharmos e doutrinarmos numa visão única.

Apesar de não haver fórmulas prontas, a literatura recente sobre o tema aponta caminhos para a construção de metodologias que possam refinar e aperfeiçoar os pressupostos da Educação para a Morte e de como esta pode resgatar tal fenômeno no seu caráter natural e inexorável. Para tanto, esforços têm sido empregados tanto a nível teórico quanto das práticas, de modo que mais e novas pesquisas na área endossam sua importância ao passo que amplificam sua efetivação concreta na vida dos seres humanos.

No documento ANGELA MORAIS DA SILVA (páginas 46-52)