• Nenhum resultado encontrado

PARTE IV – PERCEPÇÃO: NÓS E OS GRAFITES

1. A QUESTÃO DA FOTO E DO OLHAR

2.1 Conjunto 1: Buracolorido

Imagem 19 – Painel no Buraco da Paulista

Fonte: Elias Nasser (2017)

O painel “Chegada de Estranhos” é composto por grandes imagens, que consomem quase mil litros de tinta a cada revitalização37. No aspecto figurativo, apresenta naves, robôs e extraterrestres coloridos em cores primárias. A manutenção do painel ao longo de três décadas já o faz parecer datado em meio a produções com técnicas e cores mais “atualizadas”. No entanto, esse é justamente um de seus diferenciais.

Pelo relato de Rui Amaral expresso anteriormente, contando um pouco do processo de criação do painel e do Buraco da Paulista, já é possível captar elementos pertinentes à pesquisa: o início transgressor, a intervenção ilegal, o enfrentamento da ditadura, a arte como forma de

37 Matéria do site “Meio e Mensagem” (08/10/2014). Disponível em: <https://goo.gl/DcViWn>. Acesso em

protesto, de expressão e disseminação de ideias e pontos de vista. E é interessante notar que, se aquele local tem se mantido um espaço apropriado pela arte urbana desde a década de 1980, há uma real e vivenciada noção de resistência ali. O próprio nome da obra prenuncia o surgimento de um novo elemento na região, como se os “estranhos” fossem os próprios grafites que vieram do “espaço” artístico para colonizar o “território” urbano. Mais um aspecto de resistência, da arte que não respeita a tradição ou normalidade do todo administrado, do concreto ali imposto pela cidade, e traz alguma extraterritorialidade.

Porém, como foi mencionado, essa é uma das obras patrocinadas pela iniciativa privada – como a maior parte das intervenções do Nó –, especificamente por uma marca de tintas, o que se relaciona diretamente com o suporte material de feitura e manutenção da obra. O elemento de regressão existe aqui também, à medida em que a produção artística se relaciona com a produção comercial. Não obstante, a obra só pode se manter intacta por tanto tempo devido ao apoio estrutural que recebe da iniciativa privada. De certa forma, o próprio fator de resistência, aqui, está ligado ao fator de regressão.

Imagem 20 – Grafite no Buraco da Paulista

Na imagem 20, o primeiro aspecto notável é sua iluminação. Enquanto os prédios e as vias de asfalto encontram-se expostas ao céu da cidade, iluminadas pela luz do dia, o grafite (assinado como “Nem Vem”) está na escuridão, debaixo da avenida. Outro aspecto que logo se nota é o balão de fala posto à boca de uma das personagens, “Não!”. Ela diz isso para outras três personagens, cada uma caracterizada com indumentária de manifestantes ou ativistas de alguma causa.

Do ponto de vista do significado, a palavra “não” e o dedo em riste da personagem da direita demonstram uma ordem negativa. É uma negação à manifestação que trazia tochas, roupa camuflada alusiva ao exército e rostos encobertos. Tendo em vista seu conteúdo, torna- se interessante o contexto territorial desse grafite: está explicitado nas paredes de um túnel, debaixo de uma avenida, um local de passagem e velocidade, que ao mesmo tempo faz parte da via mais utilizada para realização de manifestações e protestos – a rua. E mais ainda, a Avenida Paulista. Aqui, a análise do significado encontra o significante e o contexto de produção. A pintura foi feita durante eventos de intervenção artística, autorizados pela prefeitura e possivelmente patrocinados (sobre os grafites da galeria, a informação não ficou clara). Ou seja, apesar de seu conteúdo aparentemente crítico, foi produzida num contexto avalizado pelo poder público. A imagem que evidencia o “não” da censura à manifestação recebeu “sim” do poder censurador. Foi autorizada por ele. E, quando for tempo, poderá ter seu lugar destituído e substituído por outra imagem, também aprovada pelo todo social.

A enunciação da autonomia da arte, que se depara com a realidade de heteronomia da sociedade, encontra nesta imagem um postulado curioso: denuncia-se uma negação que, ao que parece, não ocorreu. O desenho está lá, aprovado. A julgar pela categoria de análise do aspecto figurativo, a autonomia artística do produtor foi respeitada. E de fato, seu conteúdo pode ser interpretado em termos de resistência, haja vista as personagens retratadas e a situação de embate em que estão inseridas.

Imagem 21 – Grafites e pessoas no Buraco da Paulista

Fonte: Elias Nasser (2017)

Esta é uma das fotos com maior carga simbólica da pesquisa. O canteiro central parece dividir a cena em dois mundos distintos: o das moradas na rua e o dos/as pedestres a curtir um dia de sol. Acima de todos/as, praticantes de slacklining alheios/as ao resto. Na sua obra Teoria

Estética, Adorno afirma:

A recente rebelião contra a arte tem tanta verdade que, perante a penúria que progride de modo absurdo e a barbárie que se reproduz e se estende perante a ameaça omnipresente da catástrofe total, os fenômenos que se desinteressam da conservação da vida revestem também um aspecto absurdo. Enquanto que os artistas podem ser indiferentes perante um mecanismo cultural que, de todos os modos, engole tudo e nada, que nem sequer exclui o melhor, tal mecanismo comunica, porém, a tudo o que nele floresce algo da sua indiferença objectiva. (1982, p. 273) O mecanismo da indiferença não é estanque; muda de protagonista a cada situação. Ao pesquisar o campo, é possível “desviar-se” para a contemplação da arte e desprezar a humanidade ali (“Tirar fotinho cê tira, né? Ajudar a gente, nada”). Quer-se imagens, materiais, dados para a pesquisa. Esquece-se o fator humano.

Na cena retratada, o centro é iluminado e a periferia, não. Os/as praticantes de equilibrismo parecem fazer parte do “desinteresse” denunciado por Adorno, bem como as pessoas em volta, que assistem ao espetáculo em curso no nível acima. Mesmo embaixo, as pessoas retratadas passeiam de costas para as demais, num tipo de “automatização” do olhar/caminhar. Na composição fotográfica, os grafites é que parecem observar o que ocorre no subsolo. Cores e olhares resistem ao escuro e se voltam para dentro. Existe, aqui, um possível engajamento da arte, que se reconhece no indivíduo marginalizado. Não apenas lhe serve de parede e abrigo, mas participa com ele do território escuro e segregado. Uma territorialidade simbiótica: humano-artística.

Documentos relacionados