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3. A MATERIALIDADE DA INFORMÁTICA

3.2 CONJUNTOS E HILOMORFISMO

A discussão em 3.1 assume tacitamente – exceto em poucos momentos – um computador como uma máquina singular e fechada; um dispositivo total. Há várias insuficiências nesta proposição: por um lado, a identidade de um objeto técnico não é determinada em si mesmo, mas forma-se historicamente como parte de uma linhagem; por outro, computadores, como todo objeto técnico, pertencem a ecologias tecnológicas maiores, e isto é cada vez mais evidente graças à interligação em rede e ao ocultamento, em conseqüência, do lócus físico da computação. Esta seção ocupa-se destes dois temas do ponto-de-vista da materialidade da Informática.

Escrevendo em 1955, e preocupado mais com dispositivos mecânicos e elétricos do que com a Computação então nascente, Gilbert Simondon propôs uma filosofia do objeto técnico e sua evolução. Para Simondon, um objeto técnico não deve ser tomado por um exemplar isolado, ou pela função que desempenha, mas deve sempre ser visto em função de sua gênese. A unidade, individualidade e especificidade de um objeto técnico são dadas pelas

“características que são consistentes e convergentes com sua gênese” (Simondon, 1980, p. 13) Assim, o objeto técnico é “uma unidade de vir-a-ser”. A questão de o que é um computador, por exemplo, não se volta para um aparato específico e suas especificidades técnicas, mas para uma linhagem de computadores – uma linhagem definida por características que

convergem historicamente, entre gerações de modelos, com a evolução dos objetos técnicos.

Esta gênese do objeto técnico, para Simondon, tem um sentido definido: o objeto técnico caminha da máquina abstrata para a máquina concreta. Em uma máquina abstrata, os componentes do sistema desempenham cada um uma função específica; fora desta função, não devem ter qualquer influência sobre as outras partes do sistema. Em um motor abstrato,

assim, “as diferentes partes do motor são como indivíduos que podem ser pensados como operando cada um em seu turno sem nunca ter que saber da existência do outro.” (p. 15) Em oposição à máquina abstrata, a máquina concreta é tal que todas as partes atuam em sinergia; em um motor, uma peça não só exerce sua função, mas desempenha um papel, por exemplo, na dissipação de calor; as peças são integradas de maneira que o motor não pode ser

decomposto em partes independentes e auto-suficientes: “cada peça crítica é tão conectada às demais por trocas recíprocas de energia tal que ela não pode ser nada outro do que ela é.” (p. 15)

A transição do abstrato para o concreto é uma questão de eficiência: embora mais simples de um ponto-de-vista lógico, a máquina abstrata “é mais complicada pois é feita da reunião de vários sistemas completos.” Ela é, por isso, não apenas mais custosa, mas mais suscetível a falhas: a máquina concreta, que opera por sinergia das partes, é mais robusta que a máquina abstrata em que cada componente exerce uma única função. Entendido o objeto técnico em função de sua gênese, é justamente esta concretude final, já anunciada no modelo primitivo e abstrato, que definirá sua identidade: “O que estabelece a unidade e a particularidade de uma linhagem técnica é a estabilidade de um sistema subjacente de invenção ao mesmo tempo concreto e controlador.” (p. 46)

É natural que o objeto técnico responda, em sua evolução, a demandas econômicas; Simondon postula, todavia, que o elemento preponderante na evolução do objeto técnico é esta marcha do abstrato para o concreto, que não se dá por razões exteriores mas é interior ao problema da técnica. E este processo interior à técnica acaba por reverberar por toda a sociedade: “Não é a linha de montagem que produz a padronização; é a padronização intrínseca que torna a linha de montagem possível.” (p. 17)

A máquina abstrata é hilomórfica: há uma distinção clara entre forma e matéria, em que a forma é imposta “de fora” sobre uma matéria tratada como inerte: uma distância e relativa independência entre os componentes e sua articulação. Na máquina concreta, o hilomorfismo desaparece: os componentes do objeto técnico não podem ser organizados exteriormente, mas operam em sinergia e interdependência; o objeto técnico concreto não pode ser “nada outro do que ele é.” (p. 15) Note-se que a concretude não diz respeito a um enrijecimento das

potencialidades da máquina, como Simondon anuncia já a princípio:

O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, que se pode dizer aumenta o nível de tecnicalidade, não tem nada que ver com um aumento de automatismo mas, pelo contrário, relaciona-se ao fato de que o funcionamento da máquina oculta uma certa margem de indeterminação. É tal margem que permite a uma máquina ter sensibilidade à informação exterior. (p. 3-4)

Isto é: não obstante a marcha da máquina rumo à concretude, são as suas margens de indeterminação que lhe dão eficiência e robustez. No lugar da máquina automática, funcionando em uma lógica fechada, o dispositivo técnico ideal é capaz de interagir e responder ao mundo exterior, tanto se adaptando quanto abrindo um leque maior, nesta indeterminação, de potencialidades.

Simondon estava preocupado com a evolução de dispositivos como motores e tubos de raios catódicos; embora esteja consciente da reformulação do conceito de Informação acontecendo em sua época, ainda havia pouco na nascente Informática de interesse para sua investigação. E a Informática parecerá caminhar na direção oposta à descrita por Simondon: sua evolução, do hard-wiring das primeiras máquinas ao elevado nível de abstração de hoje, parece voltada para um maior nível de abstração, para a redução e encapsulamento de componentes e

funcionamentos como caixas-pretas para a operação de níveis superiores; pelo empilhamento, portanto, de vários níveis de hilomorfismo.

Em um nível mais básico, o projeto de sistemas digitais integrados em escala muito grande (dito VLSI, very large system integration) impõe desafios ao hilomorfismo: é preciso tomar cuidado, por exemplo, para que a introdução de uma nova depleção metálica não resulte em uma capacitância parasítica, ao interagir com uma depleção várias camadas – camadas físicas – abaixo; ou para que não funcione como antena captando outras interações elétricas no mesmo Hardware. A verificação de todas as possíveis interações problemáticas entre partes é uma tarefa computacional difícil, cujo processamento pode demorar dias em um computador pessoal. Esta verificação já é em si considerada uma pequena área de pesquisa, e é um serviço em que empresas como a Agilent Technologies e a Aldec, Inc. (“The Design Verification Company”) se especializaram.

Mas “o problema técnico tem a ver mais com a convergência de estruturas a uma unidade estrutural do que na busca por meio-termos entre demandas conflitantes,” (p. 15) e já no projeto de Hardware encontramos rapidamente uma lógica de abstração e estruturação que, buscando simplicidade, instauram fortemente o hilomorfismo ao objeto técnico. A evolução do objeto técnico informático parece ocorrer segundo uma ironia, em que sua individuação se dá justamente pelo benefício da hierarquização de abstrações. E no projeto de Software - uma atividade hilomórfica por definição – princípios como hierarquização, abstração e

transparência norteiam a maior parte das decisões; só rompemos com estes princípios quando, por um motivo de eficiência, somos obrigados a programar em um nível mais baixo ou de maneira mais direta do que a lógica estrutural da programação de hoje exige. O motivo para isto é, normalmente, eficiência: as várias camadas de separação introduzem ineficiência tanto pelo overhead de dados em sua articulação quanto por seu caráter genérico, não-otimizado para a tarefa específica em questão. Esta maior eficiência, para Simondon, deveria guiar a máquina rumo à sua concretude; mas isto é sobreposto pela imensa complexidade da

máquina, em que a simplicidade lógica do objeto técnico abstrato – uma simplicidade que Simondon reconhece – é crucial, e em geral mais importante que pequenos acréscimos de eficiência que custariam a modularidade e maleabilidade da máquina e dificultariam a depuração de erros, que são inevitáveis em sistemas tão complexos. Enquanto Kittler sonha, por uma lógica bastante próxima à de Simondon, com Hardware Puro (KITTLER, 1997) – pois o máximo de eficiência é obtida se abandonamos todas as abstrações de Software, isto é, todo hilomorfismo – hoje observamos mais o que Matthew Fuller chama de um “super- hilomorfismo”: a organização de uma camada inferior torna-se hylé, matéria, para a camada superior. (FULLER, 2005) Este insight pode explicar por que o tema da materialidade aparece em obras e leituras de obras em que não há nada de propriamente material em jogo; o

propriamente material perde-se de vista, sob várias camadas de organização-feita-matéria, e uma destas camadas super-hilomórficas é tomada como de facto material.

Finalmente – e isto será mais útil para nós na discussão do capítulo sub-sequente – Simondon lembra-nos que o objeto técnico não precisa ser visto, como estamos primariamente fazendo aqui, como elemento; que o objeto técnico pode ser tomado como elemento, indivíduo, ou agenciamento, e que cada uma dessas abordagens é característica de uma época. O objeto técnico tomado como elemento – isto é, como mera ferramenta – associa-se ao otimismo do século XVIII; o objeto técnico tomado como indivíduo leva à noção de um embate entre homem e máquina, e aos excessos tecnocráticos do século XIX, a “Era da Termodinâmica”. O objeto técnico torna-se uma questão imediata de poder. Finalmente, o objeto técnico tomado como agenciamento10, no século XX, é regulatório e estabilizador; o conjunto de objetos técnicos “assemelham-se à vida” – o que nos permite falar hoje em uma ecologia de

tecnologias ou uma ecologia de mídias – “e coopera com a vida em sua oposição à desordem

na remoção de todas as coisas que tendem a deprivar o mundo de seu potencial de mudança.” (SIMONDON, 1980, p. 9) Como um sistema regulatório, a técnica agora pode ser integrada à cultura – “que é também essencialmente regulatória” (p. 10) – e, mais ainda, a técnica pode servir de fundamento para a cultura. A esta revolução de perspectiva diante do técnico – do Indivíduo para o Conjunto – Simondon associa a transição para uma era de Informação; mas que se trata, ainda, da Teoria da Informação de Shannon e da Cibernética de Wiener, e não da Informática.

A noção de objeto técnico como agenciamento de partes heterogêneas, contendo margens de imprevisibilidade para interagir com o mundo, é retomada por Deleuze e Guattari com o conceito de agenciamento maquínico: o dispositivo como uma relação de elementos

heterogêneos. O agenciamento maquínico é, ao mesmo tempo, um interstratum (que regula as relações entre strata e as relações entre conteúdo e expressão de cada stratum) e um

metastratum (em contato com o plano de consistência e inevitavelmente efetuando uma máquina abstrata). As linhagens na gênese do objeto técnico descritas por Simondon são também retomadas, sob “filos maquínicos”; podemos falar de um filo maquínico sempre que “nós encontramos uma constelação de singularidades, prolongável por certas operações, que converge, e que faz a operação convergir, rumo a um ou vários traços assinaláveis de

expressão.” (DELEUZE e GUATTARI, 2004, p.448) Em última instância, podemos pensar um único filo maquínico, “idealmente contínuo: o fluxo de matéria-movimento, o fluxo de matéria em variações contínuas, carregando singunlaridades e traços de expressão” (p. 448) Esta operação é como “a unidade entre o ser humano e a natureza.” (p. 448) Também os agenciamentos de Simondon reaparecem como agenciamentos maquínicos: ferramentas não podem ser tomadas em isolamento, mas existem apenas “em relação às mesclas que tornam

possíveis ou que os torna possíveis”, (99) pressupondo uma máquina social que lhes seleciona e insere em filos.

Matthew Fuller aplica as teorias de Simondon e de Deleuze e Guattari ao caso mais específico das mídias em “Media Ecologies: Materialist Energies in Art and Technoculture”. Dentre os exemplos particulares, o mais interessante é o das rádios-pirata de Londres: um sistema construído em oposição às (ou alojado nas margens de) tentativas de hylomorfismo dos sistemas radiofônicos; e ademais um problema técnico formidável – como ser, ao mesmo tempo, invisível para autoridades e visível para o público; como minimizar o dano caso descobertos, e como se aproveitar de brechas na legislação, em uma mídia tradicionalmente centralizada – diante do qual é impossível desconsiderar, ao fim, a materialidade de qualquer um de seus elementos constituintes e da articulação entre eles.

Quando tomamos a tecnologia não mais como objetos isolados, mas como grandes conjuntos engajados com uma “máquina social”, o erro assume uma conotação política inevitável – não é apenas o desvelar de uma materialidade abstraída, mas um gesto inevitavelmente

subversivo. Este é um dos temas do capítulo seguinte, e encerraremos nossa discussão teórica sobre a materialidade da Informática – e assim das mídias digitais – neste ponto; o capítulo seguinte, que introduzirá o conceito de Aufschreibesysteme, leva esta discussão a uma formulação mais robusta e sistêmica. Nas duas seções seguintes deste capítulo, tomaremos alguns exemplos particulares da estética do erro que complementam a discussão teórica que fizemos até este ponto.

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