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MARIA DE FÁTIMA VIEIRA FIGUEIREDO ROLDÃO

cultural, da solidariedade e do activismo, é um exercício quase obrigatório.

Onde está a cultura didáctica e interventiva capaz de despertar o espírito comunitário? Onde está a intervenção na vida política por parte do cidadão comum? Onde está o aprofundamento dos ideais fundamentais de cada ser humano? A negação do mundanismo? A resistência à indiferença? As palavras-mestras da actualidade — banalização e vazio — não suscitam no indivíduo mais que uma conivente passividade.

Atravessamos o quotidiano como se nada valesse a pena, como se não existissem já grandes ideais ou como se a vida colectiva não fizesse qualquer sentido. (Sublinho vida colectiva. Não confundir com vida social e com os novos sentidos que a perverteram).

Verdadeiras questões do nosso tempo. O futebol? O consumismo? As guerras tecnológicas? Os Big Brothers da ascensão

social? Os escândalos do jet set? O exibicionismo social?...

É notório que a vida quotidiana se

superficializou e deixou de ser habitada por questões sociais fundamentais. A pressão fabulosa dos mass media tem contribuído para isso com as suas doses maciças de “imagens reais”, cruas e torpes, despidas de reflexão e contexto.

A denúncia como um acto político diluiu-se,

reaparecendo na forma de sensacionalismo e conquista de shares.

Não admira, portanto, que o cepticismo seja a opção mais confortável para a maioria daqueles que se recusa a entrar no imediatismo. O “pensar para transformar o mundo”, em que tantas gerações acreditaram, caiu em desuso. Os próprios intelectuais invertem a marcha,

ser suficientemente visível (o que equivale a dizer, suficientemente mundano), aparecendo com frequência na TV, rádio e nas colunas dos jornais, não tanto para informar e esclarecer, mas sobretudo para impressionar com discursos sedutores e descartáveis.

Estamos na era dos comentadores de notícias e dos analistas políticos. Acabou o tempo dos verdadeiros produtores de ideias (políticas ou filosóficas), ideias militantes e incómodas que abalavam consciências e valores.

É mais cómoda a cadeira do estúdio televisivo onde a realidade aparece toda

estandartizada, pronta a ser comentada, sem exigir um

pingo de acção. E tudo isto num mundo onde 20 por cento dos 6 biliões de habitantes da Terra subsistem com menos de um dólar por dia e uma em cada quatro crianças sofre de subnutrição

nos países do Sul.

Verdadeiras preocupações sociais, quais são afinal? A globalização económica e a lógica do neoliberalismo? O terrorismo internacional e as armas de destruição maciça? A discriminação de milhares de imigrantes que têm como único futuro o exílio? Os pseudo-welfare states que criam a miragem da riqueza para milhões de precarizados ou mesmo para a dita classe média?

Certamente que sim. São questões fortíssimas tais como as centenas de milhar de mortos do Ruanda ou os 3 milhões em 3 anos no Congo-Kishasa, muito superiores, sem dúvida, ao 3 mil mortos do 11 de Setembro, mas politicamente muito menos importantes. Ou o modo de produção capitalista, profundamente desequilibrado, que arrasta milhares para a fome, fabrica excluídos, fomenta as migrações em massa e sustenta a discórdia internacional.

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DIRIGIR

DESENVOLVIMENTO PESSOAL

Mas, hoje, ser um cidadão ucraniano, romeno ou moldavo e ser obrigado a percorrer milhares de quilómetros para vir desaguar, justamente, num país como o nosso, não é uma questão que suscite grandes inquietações.

O papel dos intelectuais, e dos cidadãos comuns, está longe de defender um sistema social baseado na maior participação possível de todos os cidadãos e na máxima integração social.

A inexistência de ideias fortes que possamos defender no terreno sociológico, junto dos directamente

interessados, em vez dos banais e cómodos comentários televisivos, é algo de novo. Será talvez essa principal questão política da actualidade: a ausência de reflexão e intervenção em conjunto. O espírito comunitário e grupal foi-se perdendo numa sociedade acelerada, sem o mínimo domínio sobre

o tempo, onde o utilitarismo é o princípio de todas as decisões. Embora não pensemos nisso, e pareça até contraditório, a vida estará muito mais facilitada quando conseguirmos identificar claramente os nossos ideais e objectivos, os nossos inimigos, as grandes

causas que exigem trabalho árduo e constante.

Aceitarmos a comodidade da “cabeça debaixo da areia”, julgando viver num mundo paradisíaco e sem problemas sociais, desviando o olhar da miséria que se senta nas ruas ou nos comboios, pensando que isso são outras realidades, inevitáveis e inalteráveis, é o caminho para a facilidade mas não para a felicidade individual e colectiva. E continuarmos a pensar, sobretudo os mais jovens, que vivemos no mundo da invulnerabilidade garantida, acobertados pelo proteccionismo excessivo dos pais e da sociedade de consumo que tudo garante e dispõe, é o caminho para a ingenuidade.

Todos os acontecimentos recentes, passando,

necessariamente, pelo 11 de Setembro, demonstraram o contrário: que a invulnerabilidade não existe e que as nossas certezas egoístas de nada valem num mundo de enormes abismos socioeconómicos e políticos, onde a consciência social é o que falta para inaugurar mudanças promissoras.

Se tudo o que nos rodeia é gritantemente desigual, é porque as consciências se encolheram e cederam à ambição desmedida. E é porque a formação humana dos jovens continua a ser relegada para os lugares mais baixos da hierarquia pedagógica, atrás das tecnologias, das ciências exactas, do audiovisual e da cultura materialista.

A automatização técnica trouxe a automatização intelectual. Os processos de reflexão e decisão são cada

vez menos inovadores e criativos. A consciência social e política não evoluiu ao

mesmo ritmo que o progresso técnico e económico, encontrando uma humanidade, eticamente, impreparada para o acolher. E é por tudo isto que se impõe o humanismo na vida do planeta. Um humanismo assente em valores não mercantis — solidariedade, justiça social, igualdade de oportunidades —, que nos leve a reagir, a pensar que afinal também é connosco, que somos animais políticos e interventivos, prontos para a reflexão e rebeldia. Ou como diria Pierre Bordieu: “Assumirmo- -nos como a má consciência do nosso tempo, o moscardo rebelde com o qual o sistema social não se reproduz.” Quando tanto se fala em factores preventivos é urgente formar as consciências, torná-las preventivas no verdadeiro sentido do termo, aptas a reagir com lucidez a todos os embustes informativos e socializantes. Só é tarde quando somos surpreendidos sem nenhuma consciência social e nos deixamos levar sem qualquer resistência.

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