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3. EMPENHAMENTO DO PROFESSOR E ENVOLVIMENTO DA CRIANÇA:

3.6 Consciência fonológica: entre o treino e a reflexão

O episódio descreve uma atividade de reconhecimento das letras do alfabeto e de seus respectivos sons. A professora iniciou a atividade desenhando, no quadro branco, diagramas referentes às palavras CARRO, AVIÃO, NAVIO e TREM. As crianças estavam sentadas em rodinha, de frente para o quadro. Ela distribuiu a atividade em folha para que as crianças acompanhassem o preenchimento dos diagramas, tendo em mãos seus respectivos desenhos.

Não houve, a priori, a contextualização da atividade. As crianças se comportavam como se já estivessem acostumadas a situações semelhantes, onde lhes cabia, apenas, aguardar e esperar os comandos da professora.

Episódio VI: Consciência Fonológica

A professora pergunta às crianças qual o som da primeira letra da palavra CARRO. 1- C: - A! Ca! CÊ! CÊ! (Referindo ao nome da letra)

2- P: - Não é assim!

(Ela repete o som do /c/ várias vezes e as crianças a acompanham) 3- P: - O A! CAAAA!

(Em seguida emite o som do /r/ e do /o/)

4- P: - Carro. Quantas letras têm a palavrinha carro? Uma. (Espera as crianças contarem) - Cinco! Cinco letrinhas tem a palavrinha carro.

(Na rodinha, as crianças contam) 5- C: - Seis! Cinco!

6- P: - Cinco letrinhas! Olha o numeral cinco. Cinco letrinhas da palavra CARRO. 7- P: - O segundo meio de transporte qual é?

8- C: - Avião!

9- P: - Avião. Como é que eu escrevo a palavrinha avião? A primeira letra... 10- C: - A!

11- P: - A.

12- P: - /V/ /V/ /V/. 13- C: - /V/ /V/ /V/.

14- C1: - VÊ de Vitória! (Diz uma das crianças)

15- P: - VÊ de Vitória. VI! 16- C: - /i/ /i/ /i/.

17- P: - /I/! Confirma a professora. 18- P: - /Ã/!

19- C: - /Ã/ /Ã/ /Ã/!

20- P: - O A com o quê em cima? O quê que tem em cima do A? 21-C2: - Acento!

22- P: - Qual é o acento? 23- C2: - O til!

24- P: - Muito bem! Olha o til aqui! AVIÃ-OOOO.

25- C2: - ÉLE, ÉLE!

27- C2: - /Ó/ /Ó/ /Ó/!

28- P: - Muito bem, Fernanda, você tá ficando joia. 29- P: - AVIÃO. Quantas letras?

30- C: - Um, dois, três, quatro, cinco! 31- C: - Cinco letras!

32- C2: - Repetido! (A criança refere-se ao número de letras da palavra CARRO) - O mesmo número

de letras! Só não repetiu algumas letras. 33- P: - O terceiro desenho...

34- C: - NAVIO!

35- P: - NAVIO! Qual a primeira letra?

36- C2: - ÉLE! ENE!

37- P: - ENE! Vamos fazer o sonzinho! /n/ /n/ na! Qual que é a outra letrinha? NAAAA! A! 38- C: - A!

39- P: - A! NA! VI! VIIII! NAVIOOOOO! NAVIO! 40- C: - OOOO!

41- P: - NAVIO! Quantas letrinhas têm a palavra navio?

42- C2: - Cinco! Todas terminam com O! - Cinco de novo!

43- P: - Cinco letrinhas! Muito bem! O último meio de transporte que tem aí, qual é? Qual é o meio de transporte que tem aí?

44- C: - TREM!

45- P: - TREM! Como nós escrevemos? /T/ /T/ /T/! Qual a primeira letrinha de TREM? 46- P: - Eliane, qual a primeira letrinha de TREM? Laura e Patrícia? Qual a primeira letra? 47- C: - TÊ! DÊ! Respondem juntas.

48- P: - TÊ, TÊ, Não é DÊ não! (A professora corrige uma delas). 49- C: - ERRE, ERRE! (As crianças começam a dizer)

50- P: - Faz o sonzinho! (A professora emite o som do /r/) - Qual é a letra? 51- C: - ERRE!

52- P: - ERRE! TREIM! TREIM! 53- C: - I, I!

54- P: - Essa letrinha aqui, oh! (A professora aponta para o EME)

(A professora faz uma pausa na explicação e chama atenção de uma criança) 55- P: - Eu não estou vendo o Bruno participando!

(Logo em seguida volta para a atividade) 56- P: - TREM!

57- C2: - EME! EME de mamãe!

58- P: - Muito bem! EME de mamãe. 59- C2: - Tia tem quatro letras.

60- P: - Quatro letrinhas! Vamos ler aí agora: CARRO, AVIÃO, NAVIO e TREM. Aqui dentro dos quadrinhos vocês vão colocar as letrinhas que formam a palavrinha. O nome dos meios de transporte. E aqui embaixo vão colocar quantas letrinhas tem.

Imagem 13: diagrama escrito pela Imagem 14: atividade entregue

professora no quadro branco às crianças [...]

Crianças diferenciadas, [...]: Continuação do episódio.

Fonte: Registro da pesquisadora em 12/09/2011

A professora perguntou às crianças qual a primeira letra da palavra carro. As crianças demonstraram dúvidas sobre qual seria a resposta esperada pela professora: o nome da letra, “CÊ”; a primeira sílaba da palavra, “CA”; ou o som do “/C/” (fragmento 1). A reação da professora à resposta das crianças, fragmento 2, foi instantânea e apontou para certa desvalorização das hipóteses construídas por elas.

Durante o desenvolvimento da atividade, a professora foi representando os sons das letras e as crianças imitaram-na. No fragmento 32, a criança C2 fez uma observação sobre o número de letras das palavras carro e avião, e as letras utilizadas para formá-las, demonstrando estar refletindo e construindo conhecimentos sobre o sistema de escrita. Contudo, a professora não aproveitou nem valorizou a participação dessa criança, ignorando o comentário e prosseguindo com a atividade. Em apenas um fragmento, 28, ela elogiou uma criança e, em quase todas as suas intervenções, limitou-se a chamar atenção das crianças para si, fragmentos 46/55.

No fragmento 56, a forma como a professora demonstrou empenhamento, chamando Bruno a participar da atividade e, imediatamente voltando sua atenção para o prosseguimento dela, deixou transparecer mais uma problemática inserida em grande parte das instituições da primeira infância: o acúmulo de atividades, na maioria das vezes voltada para a produção de materiais a serem expostos ou apresentados como resultado do trabalho desenvolvido e que ocupam espaços que extrapolam seus limites de valor e necessidade. A cobrança das instituições, das famílias e do sistema de ensino pela produção de resultados palpáveis da prática pedagógica, caracteriza-se em um dificultador do empenhamento do professor por meio da atenção individualizada à criança, da diversificação das situações de aprendizagem, da ampliação do tempo para escuta e troca de experiências, e outros que demandam tempo para que sejam de qualidade.

A proposta de trabalho com a consciência fonológica adequada à primeira infância é uma das prejudicadas pela problemática apontada. Essa proposta enfatiza a prática de atividades lúdicas que levam as crianças a pensar e refletir sobre o funcionamento da escrita alfabética. Ela refere-se muito mais à reflexão sobre os sons da fala que às atividades, como a descrita no episódio, voltadas ao

reconhecimento fônico das letras (ADAMS, et al., 2006). A maneira pela qual a professora desenvolveu o reconhecimento do sistema fonético8 das palavras,

fragmentos 9/20/35/45, caracterizou-se como treino da segmentação de fonemas e indicou preocupação com as crianças para que sejam capazes de isolar segmentos sonoros e memorizar as letras correspondentes a eles. Essa proposta contradiz a concepção de que a apropriação pela criança, do sistema fonético, implica o domínio da relação parte-todo, o que exige a análise sobre as dimensões sonoras da língua (MORAIS e SILVA, 2010).

Entre algumas atividades relacionadas à consciência fonológica, condizentes a Educação Infantil, estão os jogos de escuta: ouvir histórias; atentar-se aos sons da natureza; identificar ruídos de objetos, meios de transporte e instrumentos variados; os jogos com rimas: ouvir poesias, canções, versos e histórias rimadas; a introdução da noção de frases: brincadeiras com palavras curtas e longas, ouvindo palavras em frases, palavras em contexto e fora de contexto; a introdução da consciência silábica: bater palmas ao falar uma palavra, dar passos a cada sílaba pronunciada; o reconhecimento de fonemas iniciais e finais: encontrando objetos cuja palavra ou nome possuísse o mesmo fonema inicial ou final, acrescentar ou tirar um fonema da palavra formando outra palavra; e outros que, como um programa gradual, vão permitindo que a criança reflita e atribua sentido à estrutura da língua escrita (ADAMS et al., 2006). O desenvolvimento da consciência fonológica nessa etapa de ensino deve estar atrelado a práticas significativas de letramento que, juntas, permitam que a criança se aproprie do sistema de escrita e de seus usos sociais.

O envolvimento das crianças na atividade descrita é outro aspecto a ser destacado nessa análise. As crianças permaneceram sentadas no chão, em rodinha, por um período extenso, pois inicialmente a professora recebeu e deu visto no caderno do Projeto de Leitura de cada criança. A inquietação das crianças, no período final da atividade, pôde ser percebida por meio de seus movimentos corporais: deitando; sentando novamente; colocando-se em “posição de cachorrinho”9 chamando atenção de um coleguinha para fazer comentários diversos.

Contudo, mesmo demonstrando cansaço e fadiga, em momento algum, houve reclamações por parte das crianças, podendo-se perceber o esforço e persistência

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Mecanismos auditivo-perceptivos que funcionam por aproximação analítica progressiva, e que permitem à criança, desde três ou quatro meses, perceber diferenças entre “p” e “t”, “p” e “k”, “p” e “v”, etc. (STAMPA, 2009).

da maioria em manter uma postura adequada à esperada pela professora.

Uma das explicações para esse comportamento encontra-se no chamado jogo social que se desenvolve dentro das relações de poder existentes no ambiente educacional, ou seja, “o processo, através do qual as crianças aprendem as regras da convivência comunitária” (BONDIOLI, 2003, p.61). Esse jogo pode ser construído por meio de acordos entre as partes ou se fundamentar em valores como obediência e desobediência; cooperação ou competição; o que produz efeitos diretos na socialização infantil. A relação entre o envolvimento da criança e o jogo social constitui uma via de mão dupla. O nível de adesão da criança à situação de ensino- aprendizagem, de acordo com Bondioli (2003) é diretamente proporcional à sua participação na construção do jogo social do contexto.

Feitos tais apontamentos, considera-se: que a prática docente descrita no episódio não explorou todas as possibilidades de se trabalhar com a consciência fonológica, mas limitou-se ao reconhecimento fônico das letras; que a produção de sentido e criação de significado pela criança, na interação com o sujeito mais experiente e com o meio foi deixada ao acaso; que a estimulação e sensibilidade da professora em relação às crianças indicaram níveis de empenhamento insatisfatório, não proporcionando a elas adequado envolvimento.