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O represamento do Rio Machado nos trechos previstos na Alternativa 1 atingiria os municípios de Ariquemes, Jaru, Ji-Paraná e Ouro Preto D’Oeste. Em relação às populações humanas ameaçadas, houve apenas um levantamento preliminar realizado em parceria com o INCRA, que estimou em 9600 o total de atingidos nos projetos de colonização (3960, pela Usina Tabajara e 5640, pela Usina Ji-Paraná). Na época, a própria empresa admitiu que seus dados eram pouco consistentes e que o número de pessoas ameaçadas pelos projetos hidrelétricos do Rio Machado estava subestimado:

A título de esclarecimento, convém observar que o número de seis membros por unidade unifamiliar foi adotado na análise a partir do critério utilizado pela FIPE – Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – na avaliação do POLONOROESTE. Porém, no decorrer dos estudos observou-se que o número de membros por unidade unifamiliar na área é ainda superior a seis. Dessa maneira, a estimativa da população atingida pelo represamento, conforme apresentada no quadro acima, deve ser considerada como um valor mínimo. (CNEC, 1985, 5.106).

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De acordo com os dados da ELETRONORTE, 1600 lotes estavam ameaçados. Se esse valor for multiplicado por sete (uma pessoa a mais do que o cálculo inicial de pessoas por lote), o número de pessoas ameaçadas pelos projetos hidrelétricos do Rio Machado passaria a 11.200. O projeto priorizado pela ELETRONORTE, a Usina Ji-Paraná, deslocaria no mínimo 6.580 pessoas. A ausência de dados censitários municipais limitou a contagem da população ameaçada aos agricultores inscritos nos programas do INCRA, de modo que esse número diz respeito apenas à população rural dos Projetos Integrados de Colonização (PICs) Ouro Preto, Padre Adolpho Rohl e do Projeto de Assentamento Machadinho (PA Machadinho). Não foram incluídos aí os povos indígenas ameaçados, nem a população ribeirinha e os moradores da “rede urbana tradicional”. Só na Vila de Tabajara, que seria totalmente inundada pela construção da Usina Tabajara, os estudos identificaram 209 habitantes, não contabilizados como ameaçados:

A rede urbana recente, composta pelos núcleos de apoio à colonização (NUAR), não será atingida, o mesmo não ocorrendo com a rede urbana tradicional, situada ao longo do rio Ji-Paraná. Contudo esta rede sendo remanescente de antigos ciclos extrativistas de borracha e do ouro encontra-se praticamente abandonada, destacando-se apenas Tabajara com cerca de 209 habitantes a ser atingida pelo reservatório do barramento JP-04. (CNEC, 1985, 1.18).

Para a ELETRONORTE, a presença de poucos habitantes tornava a inundação de Tabajara menos problemática, como se sua origem extrativista os desqualificasse enquanto população a ser considerada nos planos da empresa. A população ribeirinha, ligada ao extrativismo da seringa e da castanha, foi caracterizada como “um pequeno contingente de população [que] ocupa, de forma esparsa, as áreas ribeirinhas do rio Ji-Paraná e dos seus afluentes” (CNEC, 1987, 45). Embora a ELETRONORTE não tenha se dedicado a conhecer as populações da região, sabe-se que algumas áreas ameaçadas, como as Glebas Santa Rosa e Jacundá, eram ocupadas por “soldados da borracha” e seus familiares, instalados em antigos seringais como parte de uma política compensatória executada pelo INCRA26. Para esta população, a empresa se comprometeu a oferecer “a opção de reproduzir, em área próxima, seu

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Os “soldados da borracha” foram atraídos para a região durante a II Guerra Mundial. Após o declínio do ciclo da borracha, muitos permaneceram nos antigos seringais. Com a política oficial de ocupação e modernização da Amazônia a partir dos anos 60, os soldados da borracha foram expulsos dos seringais, que foram disponibilizados para projetos oficiais de colonização e projetos agropecuários privados. Mais tarde, após muita reivindicação, os soldados da borracha foram reconhecidos como “heróis da pátria”, e passaram a receber aposentadoria pelos serviços prestados. O assentamento em antigos seringais fez parte da política de compensação voltada para este grupo, em execução durante os estudos da ELETRONORTE no rio Machado, nos anos 80. No entanto, na área definida pelo INCRA havia alta incidência de malária, o que causou o abandono da área e/ou a venda dos lotes.

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quadro de vida e suas atividades econômicas, tanto quanto possível em bases ainda melhores do que as atuais” (CNEC, 1987, 45). O deslocamento compulsório e o reassentamento em outra área foram apresentados como oportunidades para melhoria das condições de vida da população ribeirinha, sobre a qual tão pouco se conhecia27.

As preocupações da ELETRONORTE com deslocamento e reassentamento se concentraram na população rural assentada nos projetos de colonização do INCRA, embora houvesse suspeitas de que as populações que ocupavam as margens do Rio Machado na área urbana de Ji-Paraná também estivessem ameaçadas. O reassentamento seria feito em áreas dos Títulos Dominiais – que também seriam atingidos pela inundação – e nos próprios projetos de colonização, por meio de uma “política de adensamento da ocupação em áreas de maior potencialidade agrícola” (Ibid, 1987, 43).

A formação dos reservatórios comprometeria o sistema viário dos projetos do INCRA: em alguns projetos, as vias alimentadoras seriam inundadas (no PIC Ouro Preto, as estradas L-200, L-204, L-114 e L-82), provocando descontinuidades entre os Núcleos Urbanos de Apoio Rural (NUARs) e os assentamentos. Estradas principais também seriam inundadas e seu traçado teria que ser modificado, como a L-605, que dava acesso ao PIC Pe. Adolpho Rohl a partir da BR-364 e o Travessão de Aruari, que fazia ligação com o PA Machadinho. A rodovia estadual RO-133, que liga Tabajara ao povoado de Dois de Novembro, também seria inundada.

A ELETRONORTE previa que a inundação dos projetos do INCRA, especialmente da infra-estrutura instalada, dificultasse o processo de integração e desenvolvimento das áreas mais afastadas em relação à BR-364 (CNEC, 1985, 5.96). Para o PA Machadinho, a previsão era da desestruturação total do projeto, que ainda estava em fase de implantação. Alguns NUARs teriam suas funções regionais alteradas, o que comprometeria a proposta de nucleação rural e interiorização dos serviços urbanos (CNEC, 1985, 5.102). A regionalização e interiorização do desenvolvimento eram benefícios que, supostamente, os projetos hidrelétricos do Rio Machado trariam para Rondônia.

À descrição detalhada dos projetos do INCRA, bem como das conseqüências previstas para a infra-estrutura destes projetos, não houve correspondência em relação às implicações para

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Um dos riscos decorrentes da construção das barragens apontados pelos Arara e pelos Gavião seria a intensificação do conflito agrário já existente na região, com a criação de mais “sem-terra”, conforme falou Iran Kavsona Gavião (2006, p.155): “Por que desabrigar mais a população enquanto milhares de pessoas não têm nenhum pedaço de terra para sobreviver?”

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a população que ocupava os lotes do INCRA. Esta população foi apenas quantificada e identificada como migrante, condição que supostamente facilitaria a adaptação à nova realidade que a barragem criaria. Durante a pesquisa de campo não foi possível visitar esses antigos projetos do INCRA, hoje transformados em municípios (Machadinho D’Oeste e Vale do Anari), nem consultar a documentação do INCRA que poderia apresentar mais informações sobre o perfil dos assentados nestes projetos. Apesar disso, uma análise mais geral sobre a migração recente em Rondônia oferece algumas pistas.

Segundo dados do Centro de Estudos e Pastoral do Migrante de Ji-Paraná, na década de 80, Rondônia recebeu 938.211 migrantes (CEPAMI, 1998, 59). Para se ter uma idéia do crescimento populacional vertiginoso pelo qual esta região passou, em 1970 havia pouco mais de cem mil habitantes no estado. A maioria dos novos migrantes vieram do Paraná e do Mato Grosso. Muitos saíram do Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo. Para muitos migrantes, o caminho até Rondônia passava por todos esses estados. Antes de se mudar para Rondônia, esses migrantes haviam sido pequenos proprietários, meeiros, moradores ou trabalhadores rurais assalariados (MILIKAN, 1999, 100). Atraídos pela propaganda oficial e/ou pelo contato com familiares e conhecidos que foram assentados, chegaram em Rondônia com a expectativa de conquistar um pedaço de terra e tiveram que enfrentar uma longa fila de espera no INCRA, que já não conseguia atender à demanda, sempre crescente, por terra. Muitos desistiram e foram tentar a vida nas cidades ou aderiram aos movimentos socais de luta pela terra. Outros se dirigiram às novas fronteiras agrícolas no sul do Amazonas, Acre e Roraima28.

Para muitos dos que foram assentados nos projetos do INCRA, a sorte não foi melhor. Instalados em terras com potencial agrícola inferior (as terras mais férteis foram destinadas a grandes propriedades), a prática agrícola só era viável por meio de técnicas de produção que empregavam capital intensivo. As famílias, endividadas, se desfizeram de seus lotes. A valorização das terras na região tornava os ganhos potenciais com a venda da terra superiores ao retorno econômico da produção. A rotatividade de colonos era alta: em alguns projetos, até 70% da população originalmente assentada vendeu seus lotes. No PIC Ouro Preto, quatorze anos depois do assentamento inicial, 63% dos colonos originais se desfizeram de suas terras. No PA Machadinho, em um ano, 40% dos lotes mudaram de dono (MILIKAN, 1999, 115).

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O CEPAMI estima que entre 1987 e 1990, 520.584 pessoas deixaram Rondônia (CEPAMI, 1998, 60). Hoje, é significativo o fluxo de migrantes em direção aos Estados Unidos, Espanha e Portugal.

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Sabe-se também que Rondônia foi o destino de algumas famílias atingidas pela Usina Itaipu29, nos anos 70. A recusa da Itaipu Binacional em garantir o reassentamento dos atingidos nas regiões próximas e o baixo valor das indenizações fez com que muitos atingidos se deslocassem para Rondônia e para o Mato Grosso em busca de terras mais baratas (GUIOMAR, 2003, 106). Embora nenhuma dessas famílias tenha sido localizada durante a pesquisa, tanto os documentos da época como pessoas envolvidas com a questão agrária em Rondônia confirmam que, dentre os ameaçados pelos projetos hidrelétricos do Rio Machado, havia famílias atingidas pela Usina Itaipu. A experiência anterior de expropriação por que passaram essas famílias serviu de exemplo para alertar aqueles nunca haviam ouvido falar dos problemas causados por barragens.

Cento e sete famílias de colonos retirados da T.I. Igarapé Lourdes nos anos 80 foram assentados no PA Machadinho. A trajetória dessas famílias incluía, além da passagem por diferentes estados brasileiros, o conflito com os Arara e os Gavião, que culminou com o seqüestro, durante um mês, de dezesseis colonos. Por iniciativa própria ou enganados por políticos locais que lotearam a parte sul da TI Igarapé Lourdes, esses colonos ocuparam a área indígena. Alguns tiveram o cadastro reconhecido pelo INCRA, o que criou a expectativa de garantia do lote na região. Depois de uma operação da Polícia Federal para a retirada dos invasores, foram transferidos para o PA Machadinho, que, em seguida, ficou comprometido pela ameaça da hidrelétrica. Na época, o INCRA suspendeu toda e qualquer concessão de título de terra na região. Em entrevista30, o chefe da Unidade Avançada do INCRA em Ji-Paraná, João Luiz, que participou do levantamento da população rural ameaçada, afirmou que a expectativa em torno dos projetos hidrelétricos atrasou em pelo menos três anos o trabalho de regularização fundiária que o INCRA executava na região. E essas famílias passaram, mais uma vez, pela tensão de não ter garantia das terras que ocupavam.

Parte da área dos projetos do INCRA que seria atingida pelos projetos hidrelétricos do Rio Machado foi aos poucos abandonada pelos agricultores. A alta incidência de malária na região, as condições inadequadas do solo para produção agrícola e a precária assistência do INCRA para os assentados foram fatores que contribuíram para que aqueles que não deixaram seus lotes por

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Para uma análise do processo de expropriação em Itaipu, ver “Expropriados. Terra e água: o conflito de Itaipu”, de Guiomar Inez Germani. Salvador: EDUFBA. Editora da ULBRA. 2003. 2ª edição.

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causa da barragem, o fizessem depois, abrindo espaço para grandes propriedades, no processo de pecuarização que se intensificou em Rondônia a partir dos anos 90.

Para a ELETRONORTE, o fato da maior parte da população assentada pelo INCRA se caracterizar pela condição de “migrante” minimizaria os problemas com o deslocamento: migrantes são acostumados a mudar de um lugar para o outro. A ocupação recente dos lotes tornaria menos problemático o deslocamento compulsório, pois esta população ainda não tinha laços afetivos com a terra, nem a ocupação estava consolidada. Curiosamente, a condição migrante da população rural ameaçada pelos projetos hidrelétricos do Rio Machado foi um dos fatores que favoreceu a mobilização anti-barragem, na medida em que a religiosidade foi um dos principais eixos das redes de solidariedade que se estabeleceram entre estes migrantes. Na época, as igrejas católica e luterana aderiram à luta contra os projetos de barragem e fizeram chegar até os assentamentos informações sobre os problemas que uma barragem poderia trazer para a região. Em especial, a Pastoral dos Migrantes, ligada à Diocese de Ji-Paraná, foi muito atuante e teve papel ativo na constituição do movimento anti-barragem em Rondônia.

O enchimento do reservatório da Usina Ji-Paraná provocaria a inundação de cerca de onze mil hectares da T.I. Igarapé Lourdes, além de comprometer cerca de oitenta mil hectares da área indígena com os prejuízos decorrentes da alteração do nível do rio. Além de várias aldeias, seriam inundados cemitérios e capoeiras antigas. Áreas adequadas para roças e para abertura de novas aldeias seriam perdidas. Haveria conseqüências de ordem religiosa, já que a água é um elemento fundamental nas cosmologias Arara e Gavião. A avaliação dos eventuais prejuízos da Usina Ji-Paraná para os povos indígenas se limitou aos Arara e os Gavião que moravam na terra demarcada, cuja população foi estimada em quinhentas pessoas na época. Não foi feita qualquer consideração a respeito dos índios sem contato identificados na região do Rio Madeirinha, da Fazenda Concisa e do Igarapé Tiririca, cujas áreas de refúgio estavam ameaçadas pelo projeto. Os Uruku, um grupo desaldeado que ocupava a parte norte da T.I. Igarapé Lourdes e nos anos 80 vivia em seringais na beira do Rio Machado, seriam atingidos pelo alagamento e também foram ignorados pela empresa. As possíveis pressões sobre outras áreas indígenas da região, principalmente sobre as áreas dos Zoró e dos Suruí, próximas à T.I. Igarapé Lourdes, não foram levadas em conta nos estudos. (FORSETH & LOVOLD, 1991, 433).

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