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Consequências do novo paradigma para a sociedade

No documento O jornalismo na era do testemunho (páginas 30-40)

3. A “Era do Testemunho”

3.2. Consequências do novo paradigma para a sociedade

O processo Eichmann e a transição democrática ao final das ditaduras na América Latina conduziram, então, a um novo paradigma fundamental para a sociedade moderna: a centralidade do testemunho. O relato foi elevado de um contribuinte para a obtenção da verdade para corporificar a verdade em si.

A primeira grande mudança acarretada pelo novo quadro paradigmático social e principal motor da nova configuração social encontra-se na sacralização do testemunho. Ao expor memórias marcadas por momentos de dor incomensuráveis, a testemunha assumiu caráter intocável. Questionar a veracidade de tais episódios de profundo sofrimento tornou-se ofensa tão hedionda que nem mesmo o advogado de defesa durante o processo Eichmann ousou fazê-lo. Durante o julgamento, permitiu-se, inclusive, que as testemunhas falassem de eventos não relacionados às acusações, fato que não ocorre em julgamentos comuns.

Se anterior ao julgamento não havia o desejo de conhecimento dos horrores vividos pelas vítimas do Holocausto, a estratégia de Hausner e o recém-adquirido caráter sacro do testemunho desencadearam um movimento na direção oposta. Proliferaram infinitos produtos televisivos e cinematográficos, assim como obras literárias, peças teatrais e projetos de pesquisa universitários cuja temática eram as experiências dos sobreviventes. Esta ânsia pelo saber do Holocausto se expandiu para a necessidade de toda forma possível de conhecimento, em especial os episódios de sofrimento. No âmbito do jornalismo, principal objeto de estudo dessa dissertação, este interesse evidencia-se através da constante exploração midiática de casos de violência ou sofrimento. Exploração esta que é apenas um resultado de uma demanda do público. Dentre as iniciativas acadêmicas e midiáticas resultantes da centralização do testemunho, duas merecem destaque devido a seu pioneirismo e ideologias peculiares: o filme “Shoah”, de Claude Lanzmann e o surgimento da “Shoah Visual History Foundation” 9, criada pelo diretor de cinema Steven Spielberg nos anos 90.

9 “Survivors of the Shoah Visual History Foundation”, em português “Sobreviventes da Fundação de

História Visual da Shoah”, hoje chamada de “USC Shoah Foundation Institute for Visual History and Education”, é uma organização não-governamental criada por Steven Spielberg em 1994. O principal objetivo do instituto era o de registrar em vídeo testemunhos de sobreviventes do Holocausto. A

23 O filme, que apresenta nove horas e meia de duração, consiste em uma sequência de depoimentos sobre o Holocausto, tanto de judeus, como de não judeus que viveram durante o período e de oficiais alemães partidários do regime. Ao expor estes diferentes depoimentos, Bertolini (2010) afirma que Lanzmann objetivava restituir a história àqueles mortos durante o Holocausto. Spielberg, por sua vez, através de sua fundação buscou recolher depoimentos para constituir a História do Holocausto. Os testemunhos neste caso eram controlados, possuíam duração máxima e seu conteúdo era pré-determinado. O objetivo do cineasta não era registrar uma história oral do Holocausto, e sim mostrar a sobrevivência, provar que o nazismo havia falhado. Ele queria assim, diferentemente de Lanzmann, substituir a História científica pela História dos testemunhos, que seria “a verdadeira História”, aquela contada por aqueles que a viveram.

Os objetivos dessas duas iniciativas demonstram, portanto, uma grande mudança: a substituição da história documental pela história testemunhal. Consolidou- se a crença de que o relato seria a forma mais pura e verdadeira de contato com a História. Da mesma forma, o jornalismo, embora mantenha seu discurso de inserir sua prática sob a égide da objetividade, passou a conferir um valor cada vez maior ao testemunho como fonte factual, reduzindo a preocupação em verificar o que é relatado pela testemunha ou em apresentar uma visão contraditória para expor ao público um panorama completo do fato noticiado.

A exploração midiática da História do Holocausto atingiu tamanha proporção, que alguns sobreviventes repudiaram certas iniciativas. A minissérie “Holocaust”, televisionada no final da década de 70 nos Estados Unidos, por exemplo, foi um sucesso de público, com 120 milhões de espectadores. Os sobreviventes, no entanto, criticaram a produção, questionando seu caráter muito romanceado, excluindo as principais mazelas pelas quais as vítimas passaram: sofrimento, fome, angústia, em favor de temáticas cinematográficas como histórias de amor impossíveis. A reclamação, posteriormente, segundo Wieviorka (2006), assumiu dimensão ainda maior, com o sentimento por parte de alguns sobreviventes de serem destituídos da própria história. fundação recolheu mais de 52 mil relatos entre 1994 e 1999. Atualmente, sua meta é combater

24 Evidencia-se aqui um problema de grande complexidade e que afeta diretamente a produção jornalística. Além do caráter de construção inerente à memória – que será abordado a seguir – a própria mídia realiza, a partir do testemunho, um segundo processo de construção. Essa última versão finalizada pela imprensa é a que é divulgada e assumida como verdade pelo público, disseminando uma história ainda mais distante da “real”. A manutenção da referencialidade, ao menos em algum grau, ameniza esse afastamento, que é, ao contrário, potencializado quando o testemunho – repleto de subjetividades e lacunas – atua como principal ou única fonte.

Mais um grande problema decorrente da confiança cega no testemunho está em que, além da óbvia possibilidade de uma invenção por parte da testemunha – como o surgimento de testemunhos falsos no Holocausto que será analisado mais adiante -, a memória não constitui um retrato fidedigno do passado. Ela é, ao contrário, uma construção sobre a qual influem diferentes fatores. Relatar uma história significa organizar uma sequência de fatos em uma narrativa lógica. É justamente esse processo de narrativização dos fatos que é problemático. Os relatos são produzidos no presente e, por isso, se adaptam às particularidades da época em que são construídos, com os paradigmas políticos, sociais e culturais característicos de cada período. O relator, então, insere elementos do presente para manter a coerência de seu discurso, assumindo um caráter de persuasão. Quanto mais distante o testemunho for do fato, mais ele se distancia da história e do fato em si.

É errado, portanto, acreditar que a narração pode ocupar o lugar da explicação e da compreensão quando estas estão ausentes. A memória sempre recorre a formas narrativas, cujas representações ficam estilizadas e simplificadas. Em suma, aquele que narra fala no presente sobre um tempo passado, gerando um anacronismo inevitável. O presente (contexto social, político, intelectual) é o que possibilita a rememoração, assim como sua difusão. O que não significa que se deve excluir a memória, e sim ter consciência de seu caráter anacrônico, assim como seu poder de influenciar questões políticas da atualidade.

A plasmação da memória pelo contexto do período histórico-social em que é produzida não é o único fator que permite o questionamento do relato. Refletindo sobre a prática da autobiografia, Arfuch (2002) destaca o problema do distanciamento do

25 sujeito que relata e aquele que é protagonista da história. A essência da autobiografia, assim como de qualquer relato, é precisamente a de que estes dois indivíduos são a mesma pessoa, mas na prática ocorre justamente o oposto. O autor do relato não expõe a si mesmo, e sim uma visão construída dele próprio, isto é, o relato de si mesmo não passaria de mais uma forma de literatura, já que representa apenas uma perspectiva do autor sobre a própria história.

Não se tratará então de adequação, da reprodução de um passado, da captação “fiel” de acontecimentos ou vivências, nem das transformações “na vida” sofridas pelo personagem em questão, mesmo quando ambos – autor e personagem – compartilharem o mesmo contexto. Tratar-se-á, simplesmente, de literatura [...]. (ARFUCH, 2002, p.55)

Os gêneros discursivos estão, portanto, inseridos num certo contexto, que implica não apenas em uma visão de mundo, mas também no estabelecimento de uma valoração, isto é, uma perspectiva ética. De forma inconsciente, designamos títulos de bondade ou maldade, certo e errado, como em uma verdadeira narrativa de ficção. Se em um texto factual esse risco já se mostra presente pelo impulso resultante do modelo social vigente, no relato, em que a pessoalidade e a subjetividade predominam, esta prática é quase certa. Bakhtin (BAKTHIN apud ARFUCH, 2002, p. 71) definiu esta tendência como “fabulismo da vida”, ou seja, a história de vida torna-se uma narração, “é a fábula da (própria) vida, narrada uma e outra vez, o que constitui em verdade o objeto da biografia.” (ARFUCH, 2002, p.71)

Durante a construção da narrativa da memória, além da prática de valoração, é comum o emprego excessivo do detalhe a fim de salientar a veracidade do relato. Um indivíduo capaz de lembrar dos mínimos elementos de um fato passado seria de confiança inquestionável para transmitir a mensagem central do evento. “Num testemunho, jamais os detalhes devem parecer falsos, porque o efeito de verdade depende deles, inclusive de sua acumulação e repetição.” (SARLO, 2007, p.52).

Nos relatos de sofrimento, como o dos torturados pela ditadura ou o dos filhos dos desaparecidos durante este mesmo regime totalitário na América Latina, esse detalhismo se faz presente de forma constante e, por muitas vezes, termina por dispersar o argumento inicial. A rememoração assume, assim, um caráter predominantemente afetivo em lugar de factual, tendência que diverge das premissas clássicas do jornalismo. Esses relatos, então, pertenceriam ao gênero que Sarlo (2007) chama de

26 realista-romântico: sua subjetividade o isenta da dúvida metodológica. O próprio sujeito que narra está se aproximando de uma verdade que nem ele mesmo conhecia até então, apenas habitava sua mente na forma de fragmentos de memória.

Como será destrinchado no próximo capítulo, a revista “piauí” faz uso do detalhe mais do que como recurso, o adota como estilo editorial. Quase a totalidade das matérias da publicação apresenta um excesso de detalhes, sendo repleta de descrição de ambientes, expressões faciais, vestuários, objetivando atingir este efeito de verdade. O jornalista aparece como um ser onisciente e, portanto, a credibilidade em seu relato seria indubitável.

O uso do relato na história e no jornalismo traz, então, um paradoxo importante: cada pessoa tem direito a ter sua própria memória, com suas particularidades, que fazem parte de sua identidade, mas esse direito entra em conflito com o dever do historiador e do jornalista, que é a busca pela verdade. O testemunho precisa de autenticação externa para ser validado como verdadeiro, não basta por si só. Contudo, o relato não mais aceita e não é submetido às mesma regras de comprovação que um discurso referencial. A vivência de episódios de trauma extremo como o Holocausto os isentaria de tal questionamento, já que a experiência seria inexplicável. Com o risco de atestar o óbvio, a comprovação da veracidade dos fatos, fundamental à história e ao jornalismo, é impossibilitada.

Para que o relato cumpra sua função, precisa ser apelativo, conquistar o público a que se dirige. Em uma construção marcada pela subjetividade, é fundamental o estabelecimento de uma identificação com o leitor ou espectador. Além de denotar credibilidade, o detalhe servirá a este propósito, reificando o tom sentimental do relato. Da mesma forma, a representação da vítima como uma pessoa comum se apresenta como essencial ao estabelecimento da identificação.

Para além da publicação de quantidade de livros de testemunho e pesquisa, a tela televisiva foi muitas vezes, nos últimos anos, lugar de rememoração, em que o vivido por alguém em particular vai naturalmente para além do autobiográfico, a fim de envolver identidades coletivas e sentidos compartilhados. (ARFUCH, 2002, p.106)

O promotor do processo Eichmann, Gideon Hausner, escolheu testemunhas que evidenciassem essa normalidade. Da mesma forma, Steven Spielberg deixou claro que todos os depoimentos feitos à “Shoah Visual History Foundation” deviam evidenciar

27 este caráter de “comum” das vítimas. Na matéria publicada pela revista “piauí” sobre o político Marcelo Freixo, que será analisada no próximo capítulo, os traços dessa tendência são marcantes. Ser perseguido pelas milícias e a recusa em associar-se aos grandes conglomerados políticos são características que facilmente o fariam ser retratado como herói nacional. Exibi-lo como um indivíduo superior aos demais criaria, no entanto, um distanciamento, dificultando a identificação para com o personagem. A semelhança é mais eficaz que diferença. A preferência pela biografia heroica, isto é, aquela que destaca os grandes feitos, a excentricidade, a glória perante os demais é substituída pelo que Arfuch (2002) chama de “biografia social cotidiana”, em que o herói é o indivíduo com valores morais e familiares sólidos, que busca praticar o bem e atingir a felicidade.

O caráter apelativo dos testemunhos se deve também a um fator importante, mas que parece habitar a esfera da obviedade. Os fatos narrados realmente aconteceram. A revelação de eventos que apenas aquele que os viveu pode denunciar produz certo efeito místico e de encantamento. Por isso, quanto mais evidências de sua veracidade o relato oferecer, maior será sua atratividade. Aqui, a forma exercerá papel fundamental, garantindo que o testemunho não apenas seja real, mas também e, principalmente,

pareça real. “Avançando uma hipótese, não é tanto o “conteúdo” do relato por si

mesmo – a coleção de acontecimentos, momentos atitudes – mas precisamente as

estratégias – ficcionais de autorrepresentação o que importa.” (ARFUCH, 2002, p.73)

A intenção de promover a identificação acarretou outra tendência: a valorização do homem comum. No caso da reportagem sobre Marcelo Freixo, ocorreu a normatização de um indivíduo que, na realidade, destaca-se por suas atitudes incomuns. No entanto, para além da representação, disseminou-se o destaque de pessoas de fato “normais”. O sucesso dos “reality shows” é a prova do êxito este modelo. Embora o amor, a competição, o ciúme, a determinação, sejam características comuns à maior parte das pessoas, no novo paradigma social e consequente modelo midiático, elas assumem caráter extraordinário. É importante lembrar, contudo, que a necessidade da exibição do homem comum antecede o fervor dos “reality” e remonta ao início do registro audiovisual dos testemunhos do Holocausto. Como observou Frédéric Gaussen:

28 “A ideia que se instaurou é a de que todas as histórias de vida mereciam ser contadas.” (GAUSSEN apud WIEVIORKA, 2006, p.96)10

A partir deste momento, portanto, tanto nas ciências humanas como na mídia, o assunto em voga tornou-se contar a história do homem comum. Nesse mesmo período, por consequência, os sentimentos e problemas particulares começaram a ser relatados na televisão e no rádio, surgindo a chamada “televisão da intimidade”. Esta valorização do homem comum, então, estimulou a presença da subjetividade nos relatos jornalísticos, na medida em que se tornou necessário acrescentar aspectos pessoais e elementos da rotina e da vida do personagem em questão para evidenciar sua “normalidade” e atrair o público por meio da identificação.

O processo de narrativização dos relatos e a construção da imagem do personagem para fins de identificação conduzem, então, a mais um paradoxo deste novo paradigma social que se constituiu, muito evidente nas práticas jornalísticas. Segundo as premissas do jornalismo clássico, para que o personagem seja digno de ocupar espaço na mídia é preciso que atenda a pelo menos um dos critérios de noticiabilidade, apresentando características que sejam relevantes ao interesse público. No entanto, é na construção das notícias, assim como no método de condução da entrevista do personagem que essa relevância é justificada e assume sentido. As peculiaridades do indivíduo em questão são adequadas ao imaginário e modelos sociais já conhecidos. “O plano do relato apresenta, por sua vez, o deslizamento da pessoa ao personagem, ou seja, à construção ficcional que toda aparição pública supõe e, consequentemente, a uma lógica narrativa das ações.” (ARFUCH, 2002, p.191).

E é neste processo de adequação aos padrões conhecidos da sociedade que se estabelece o paradoxo: ao mesmo tempo em que busca destacar os indivíduos, acaba por uniformizá-los. “É que, quase obrigatoriamente, a voz do outro tornará a “unicidade” do personagem propriedade comum, experiência comparável e compatível, ilustração do já conhecido.” (ARFUCH, 2002, p.195) Os personagens midiáticos serão encaixados sob os modelos que historicamente mereceram destaque: artes, dinheiro, fama, excepcionalidade, dentre outros padrões. Assim, a identificação atua em uma via de

10

29 mão dupla: pelo afastamento, que deve garantir a singularidade da pessoa e, ao mesmo tempo, pela proximidade, que procura enquadrá-lo como ser humano.

O estabelecimento da ideia de que todos precisavam se expressar no período posterior ao Holocausto gerou uma questão ainda mais complexa: a identidade dos sobreviventes passou a ser definida pelo que haviam passado. De sujeitos, passaram a sobreviventes. Testemunhar ganhou um caráter social e psicológico importante, já que o registro da história do indivíduo seria uma forma de devolver a história que lhes havia sido roubada. Assim, o testemunho restauraria a identidade do sobrevivente e também dos descendentes daqueles que não sobreviveram, que se sentiriam perdidos, sem origem. A mesma lógica se reflete na mídia atual em que um indivíduo pode ser taxado por alguma característica específica ou um ato realizado que sobressaia – de forma positiva ou negativa.

Os relatos em primeira pessoa nos diferentes formatos – cinema, literatura, mídia – são exaltados, portanto, por sua dupla função: a restituição da identidade e a cura para a alienação. No entanto, as diversas problemáticas em torno da memória como construção questionam a eficácia do testemunho como solução. Embora seja inegável que a proliferação de relatos posterior ao processo Eichmann tenha trazido à luz temáticas de relevância inquestionável, como a necessidade de evitar um novo episódio como o Holocausto e fornecer apoio às suas vítimas, é preciso lembrar que um testemunho não dá conta de todos os pontos de vista de uma mesma História. Assim, considerá-lo como solução final para a ignorância perante os malefícios da humanidade seria atitude irresponsável ou, no mínimo, ingênua.

Em contrapartida, a defesa da concepção de matérias jornalísticas ou de uma História que ignorem a sentimentalidade embutida em seus fatos seria igualmente incorreto. É fundamental associar os eventos aos impactos humanos que eles produziram, por isso a memória é, além de direito, um dever dos protagonistas da História. Todavia “não há equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de uma verdade da lembrança; tampouco o dever da memória obriga a aceitar essa equivalência.” (SARLO, 2007, p.44)

Para abordar a subjetividade do testemunho, contudo, é preciso que o jornalista ou historiador mantenha uma determinada distância em função de seu caráter humano.

30 Se o profissional dessas duas áreas for envolvido pela emoção dos fatos sua imparcialidade será inevitavelmente afetada. Consequentemente, a função primária destes é distorcida. Em lugar de entender e explicar, deixando a opinião a cargo do público, o jornalista se transforma em um emissor de julgamento. Tal prática é evidente nas mídias atuais, em que a visão do autor da matéria é cada vez menos disfarçada no texto. Estamos na época em que histórias individuais e opiniões pessoais tomaram o lugar da análise. Para Wieviorka (2006), os historiadores e, por extensão, poderíamos acrescentar os jornalistas, renunciaram à difícil tarefa da compreensão.

Esta excessiva valorização e confiança no testemunho levaram à construção da “pós-memória”, para Sarlo (2007), ou “memória-prótese”, para Bertolini (2010). Ambas as expressões implicam a formação de uma memória constituída a partir de informações institucionais e pelos descendentes dos verdadeiros protagonistas dos fatos. Por definição, esta rememoração possui caráter inevitavelmente mediado. Dessa forma, além das influências da temporalidade e da perspectiva quando o próprio protagonista do fato narra sua história, tornaram-se marcantes as influências de entidades externas, a mídia em particular. Quanto maior o peso da imprensa sobre a sociedade, maior influência ela exercerá sobre as construções do passado. “[...] se o passado não foi vivido, seu relato só pode vir do conhecido através de mediações; e mesmo se foi vivido, as mediações fazem parte deste relato” (SARLO, 2007, p.92).

Como explicitado ao longo desta dissertação, qualquer forma de lembrança passa, inevitavelmente, por um processo de construção, é uma etapa inerente à formação da memória. A memória, assim como a pós-memória, estaria repleta de um vazio, ou seja, de fragmentos, que são preenchidos por “operações linguísticas, discursivas, subjetivas e sociais do relato da memória” (SARLO, 2007, p.99). O problema aparece a partir do momento em que a rememoração é assumida como verdade. É preciso manter sempre em mente o caráter fragmentário da memória, reconhecendo que ela opera sobre

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