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7 – CONSEQUÊNCIAS DA QUEBRA DA CONFIANÇA

7.1 – Considerações Gerais

Um breve olhar sobre as concepções adotadas no século XIX aponta que o princípio da autonomia privada e o conceito de pacta sunt servanda que era seu corolário, por privilegiarem o voluntarismo jurídico, reservavam pouco espaço para a atuação da boa-fé objetiva.

Atualmente, com escopo de atender às situações sociais da modernidade, em contraposição à prevalência da vontade, sobressai uma concepção objetiva da relação contratual e, em decorrência, da obrigacional, devendo ser consideradas, assim, em todas as fases da relação contratual, as circunstâncias que envolvem o dinamismo das atuais relações, e, principalmente, a diversidade das condições economico-sociais das pessoas envolvidas.

A proteção dos interesses, portanto, terá como foco a valorização da confiança, as expectativas geradas na contraparte e a boa-fé decorrente do vínculo, pelo que o intervencionismo na relação contratual, relativizando o antigo dogma da autonomia da vontade, será cada vez mais necessário, tendo em vista os reflexos sociais das relações contratuais.

A violação dos deveres ditos secundários, ou seja, relativos à conduta ímproba que defraude a confiança, pode ensejar a responsabilização por existir uma relação obrigacional, independentemente do contrato, a qual se está fundada na boa-fé objetiva, que, por sua vez, atua desde as negociações até depois de cumprido o contrato.

Isto porque, tal como afirma Ruy Rosado, o contato social é categoria das ‘relações contratuais de fato’, cuja significação jurídica advém não propriamente da vontade, mas da simples conduta social típica284.

Desta forma, se passará a se analisar nos tópicos seguintes, os efeitos que emanam da violação do princípio da boa-fé, nas fases que envolvem a relação

284 AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção Dos Contratos Por Incumprimento Do Devedor. 2ª ed. Rio de

contratual, fazendo-se uma análise, ainda, de como a jurisprudência vem se posicionado em questões como tais.

7.2 – Efeitos Decorrentes Da Não Observância Do Dever De Boa-Fé Na Fase Pré-Contratual

No que toca à fase pré-contratual, assevera Antonio Junqueira Azevedo que a mesma deve ser decomposta em duas fases menores, quais sejam, negociações e oferta, sendo que, a seu ver, o pensamento, infelizmente, ainda muito difundido, de que somente a vontade das partes conduz o processo contratual, deve ser definitivamente afastado. É preciso que, na fase pré-contratual, os candidatos a contraentes ajam, nas negociações preliminares e na declaração da oferta, com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando rupturas abruptas e inesperadas das conversações, etc.285.

A responsabilidade pré-contratual, resultante de prejuízos causados na primeira fase do processso contratual, embora resulte de ato ilícito, provem de descumprimento de dever específico imposto pela norma da boa-fé; por isso obedece às regras da responsabilidade contratual, antes que da responsabilidade extracontratual.

A infringência dos deveres secundários relativos à boa-fé na fase pré- contratual ou mesmo a frustração da expectativa legítima, na verdade, pode afetar a própria validade da relação a ser formada.

Isto porque, na linha do que preconiza Ruy Rosado, "durante as tratativas premininares, o princípio da boa-fé é fonte de deveres de esclarecimento, situação que surge seguidamente quando uma das partes dispõe de superioridade de informações ou de conhecimentos técnicos, que devem ser repassados amplamente

285 AZEVEDO, Antonio Junqueira. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor:

estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. In: Revista de Direito do

e de forma compreensível à contraparte, para que esta possa decidir com suficiente esclarecimento de causa"286.

Ora, a violação de referidos deveres secundários antes da celebração do contrato, a par de poder ensejar a responsabilização por eventuais danos sofridos, pode afetar, dependendo da sua gravidade, a própria validade o vínculo.

Isto porque, a quebra da confiança afeta diretamente a vontade, viciando-a. daí porque não há como se atribuir validade a um vínculo cujo cumprimento de obrigações certamente será frustrado.

Nesse sentido, necessária a distinção entre confiança e crença destacada por Luhmann e citada por Anthony Giddens, no sentido de que "quando se trata de confiança, o indivíduo considera conscientemente as alternativas para seguir um curso específico de ação ... um indivíduo que não considera alternativas está numa situação de crença, enquanto alguém que reconhece essas alternativas e tenta calcular os riscos assim reconhecidos, engaja-se em confiança"287.

Portanto, a defraudação da confiança na fase de aproximação que antecede a contratação deve ser livre e conscientemente sopesada pela parte que se viu lesada, podendo afetar, dependendo da sua gravidade, a própria vontade de contratar e, assim, a validade da relação, pois "o princípio da boa-fé impõe aos contratantes o dever de agir de modo a assegurar à contraparte a realização das legítimas expectativas derivadas do contrato"288.

Nesse sentido, inclusive, aponta a jurisprudência, sendo relevante a citação de julgado proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que no julgamento da Apelação Cível nº 00.009522-2, analisou a ausência de oferecimento de informações necessárias para a parte e asseverou que: "E a razão de ser do princípio é simples. Para que a declaração da parte possa vinculá-la, é necessário que tenha sido prestada com o mínimo de autonomia. O comprador do veículo, se estivesse bom informado acerca das condições do veículo e das restrições que

286 AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção Dos Contratos Por Incumprimento Do Devedor.2ª ed. Rio de

Janeiro: AIDE, 2003. p. 250.

287 GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p. 39.

288 AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção Dos Contratos Por Incumprimento Do Devedor.2ª ed. Rio de

recaiam sobre ele, talvez tivesse optado por não concluir o negócio, ou até mesmo barganhado no preço. Assim, pode-se enunciar que, se em virtude da ausência de informações ou de sua falsidade, a parte declara-se obrigada a algo, é evidente que não se pode considerá-la autônoma nesse ato. Em decorrência, não se lhe pode impingir o ônus de suportar as consequências da declaração”289.

Ora, se assim é, a quebra da confiança antes mesmo de ser celebrado o contrato, afeta a validade da relação, de modo que a parte afetada em sua confiança não pode esperar o normal desenvolvimento da relação, com o cumprimento de obrigações que virão a ser assumidas, remanescendo, no entanto, em caso de prejuízo, a possibilidade de reclamação.

7.3 – A Quebra Da Confiança No Decorrer Da Relação Contratual

Após estabelecida a relação contratual, mediante requisitos de existência e validade, para a extinção do vínculo, surge para a parte a possibilidade de resolução, que é, como aduz Ruy Rosado de Aguiar Jr., um modo de extinção do contrato, decorrente do exercício do direito formativo do credor diante do incumprimento do devedor, que incide sobre todos os contratos bilaterais, independentemente de previsão contratual, a teor do disposto no art. 475 do Código Civil, autorizando o credor a pedir em juízo a resolução do contrato não cumprido290.

Portanto, a infringência dos deveres acessórios decorrentes da boa-fé no decorrer da relação contratual não a invalidam, porquanto constituída sob o pilar de requisitos existentes e válidos, afetando, contudo a eficácia da relação.

Como enfatizado por Ruy Rosado, o princípio da boa-fé objetiva é critério decisivo para julgar a extinção da relação e orientar o juiz na determinação dos danos e na solução dos problemas surgidos com a necessidade de restituição das partes à situação anterior.

289 TJ/SC - Apelação Cível nº 00.009522-2, julgamento em 29.03.01, Des. Rel. Pedro Manoel de Abreu.

290 AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção Dos Contratos Por Incumprimento Do Devedor.2ª ed. Rio de

Ainda, além de fundamentar a extinção, a incidência do princípio da boa-fé atua como verdadeiro limitador de referido direito, quando este representa o abuso no exercício de uma posição jurídica que possa causar prejuízo ao devedor, sem a correspondente vantagem ao credor, como nos casos de adimplemento substancial.

Nesse sentido verifica-se o entendimento adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 469.577, publicado em 05.05.03, que entendeu pela impossibilidade de apreensão do bem frente à diminuta dívida291. Cite-se, ainda, que a mesma orientação de adimplemento substancial foi seguida pela Primeira Turma daquela Corte, no julgamento do Recurso Especial nº 914.087, em que se analisava inadimplemento de contrato administrativo292.

Portanto, como se vê, a quebra da confiança em razão da violação aos deveres inerentes à boa-fé objetiva, podem render ensejo à resolução do contrato, se a parte prejudicada assim o entender, tendo em vista a impossibilidade produção

291 STJ – RESP 469.577, Publicado no DJ de 05.05.03, Rel. Min. Ruy Rosado: “ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.

Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial. Não viola a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora. Recurso não conhecido”.

292 STJ – RESP 914087, publicado no DJ de 29.10.07, Rel Min. José Delgado: “ADMINISTRATIVO.