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Consequencialismo e relações paterno-filiais

No documento DA AFETIVIDADE NAS RELAÇÕES (páginas 85-88)

5 AFETO NOS ARRANJOS FAMILIARES E CONSEQUENCIALISMO

5.3 Consequencialismo e relações paterno-filiais

A decisão dos juízes é fator sempre de insegurança jurídica, e isso não decorre de um defeito de técnica ou mesmo de caráter do juiz, mas sim da própria humanidade. É possível tentar prever as ações humanas, mas não se pode dar certeza de que elas ocorrerão e que, em se ocorrendo, será sempre de um sómodo. Mesmo diante da legislação positivada, o juiz tem sempre uma área de interpretação, que pode variar dentrode uma moldura.

Por isso, em todas as suas decisões, os juízes devem se pautar de cuidados, estando sempre atentos às consequências e reflexos que suas decisões podem ocasionar na seara jurídica. Em especial, o campo do Direito das Famílias demanda cuidados, pois envolve pessoas e seus sentimentos, conflitos, angústias e desejos mais íntimos.

Neste contexto, as relações paterno-filiais são alvo de intensas ações judiciais, nas quais se busca a tutela de uma série de demandas: investigatórias de paternidade, declaratórias de paternidade afetiva e até mesmo negatórias de paternidade, que visam, em sua essência, a constituir ou desconstituir um vínculo paterno-filial. Por isso, o afeto se tornou protagonista principal desses litígios, passando a servir como parâmetro para a definição dos vínculos parentais, com a tentativa de propiciar justiça aos casos que se apresentavam: não se podia mais desprezar a verdade afetiva, aquela decorrente da estabilização dos laços

familiares, ao passo que, por anos, preconizava-setão somente a verdade biológica, decorrente dovínculo genético.

No caso da multiparentalidade, por exemplo, se sob a ótica do afeto e se levando em consideração a dignidade do filho verifica-se estabilidade nas relações paterno-filiais, e por conseguinte denota-se a coexistência harmoniosa de mais de um vínculo de paternidade, não faz sentido não reconhecê-lo, em respeito à dignidade e a afetividades das partes envolvidas. Esse entendimento já começa a se consolidar, sendo uma realidade já admitida pelo Poder Judiciário, máxime porque é fundamental à formação da identidade da criança e do adolescente, ter registrado em seu assento de nascimento o espelho de sua família.

Outrossim, em uma ótica consequencialista e ante a possibilidade de vínculos multiparentais em filiação, questiona-se qual seria o limite para o estabelecimento de novos vínculos de filiação, já que, em nome da liberdade existencial e da autonomia de vontade, preconiza-se que as relações filiais devem ser amparas em sua totalidade.

Para exemplificar, tem-se o exemplo de uma mulher que, ao longo da vida, casou-se ou constituiu união estável com quatro pessoas, sendo um deles o pai biológico de seu filho. Todos os três padrastos desenvolveram bons laços afetivos com o enteado, exercendo a verdadeira função de pai enquanto estavam casados com a mãe. Teriam todos esses padastros o direito/dever de pai perante o filho de sua (ex)esposa?

Para o consequencialismo, o Direito deve ser enxergado em sua visão sistêmica e, por isso, o receio com os caminhos abertos pela multiparentalidade geram dúvidas e uma série de questionamentos acerca da viabilidade fática da mesma. De sobremaneira, o afeto aqui também exerce o papel de base, fundamento e solução do problema criado.

É por esse e outros motivos que o afeto éque deve nortear todas as decisões em Direito das Famílias. Porque não preconizar os laços afetivos existentes? Os argumentos vazios de “serão pais”, ou “serão oito avós paternos”, por si só, não refutam o laço afetivo existente. Obviamente, o operador do Direito se verá diante de novos conflitos e deverá buscar a melhor e mais harmônica solução ao caso concreto, preservando-se a adequação das realidades sociais às necessidades jurídicas das pessoas em geral.

No mesmo sentido, encontra-se a temática da adoção intuitu personae ou dirigida em nosso ordenamento. Durante muito tempo, enfaticamente foi reproduzida a impossibilidade jurídica de se tutelar essa modalidade de adoção, sob o argumento de que a mesma estimularia o comércio ilegal de crianças, fomentando um preocupante panorama de sequestros de menores para direcionamento a adoções não legalizadas.

Em linhas gerais, essa modalidade de adoção ocorre quando a mãe biológica manifesta o interesse em entregar a criança a pessoa conhecida, sem passar pelo trâmite exigido pela Lei, que é a inclusão do adotante no Cadastro Nacional de Adoção. Atualmente, essa medida é proibida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, bem comoé tipificada no artigo 242do Código Penal.

Todavia, constantemente o Poder Judiciário depara-se com casos em que se pleiteia a regularização do estado de filho de uma criança que foi direcionada a alguém, e, excepcionalmente, os juízes tem deferido a medida como forma de preservar o melhor interesse do menor e privilegiar a afetividade havida entre as partes, quando comprovada a existência de forte vínculo entre adotante e adotado, não havendo indícios de maus tratos, negligência ou abuso:

Destaca-se que a jurisprudência tem reconhecido a adoção consentida. Para a 3a Turma do STJ, “a observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro”. A mesma Turma, no Resp 1347228/SC, deferiu a adoção de uma criança que já convivia a mais de um ano com os postulantes, considerando que tal convívio tinha o condão de estabelecer o vínculo de afetividade da menor com os pais adotivos. Para o Relator Ministro Sidney Beneti, a inobservância da preferência estabelecida no cadastro de adoção competente não constitui obstáculo ao deferimento da adoção quando isso refletir no melhor interesse da criança.146

146PEREIRA,Tânia da Silva. In: PEREIRA,Rodrigo daCunha(Org.). Tratado de Direito das Famílias. 2. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2016, p. 405.

Sendo assim, vários projetos de lei tramitam no Poder Legislativo, visando a regularização da adoção dirigida, como forma de incentivar que as famílias não vivam com crianças em condições irregulares ou optem porrealizar a adoção à

brasileira, registrando como seu filho de outrem. Dentre os mais relevantes, encontram-se o Projeto de Lei 7.632/14, apresentado pela Deputada Lilian Sá (PROS-RJ)e o PLS 369/2016, deautoriadoSenador Aécio Neves (PSDB-MG).

Ambos os projetos acima mencionados encontram-se ainda em votação e visam à regularização da adoção intuiutu personae para crianças a partir de dois anos de idade. Todavia, os projetos sofrem intensas críticas no sentido de que abrem uma brecha para que as pessoas possam “furar a fila” da adoção e se aproveitar de pessoas mais vulneráveis financeira, social e emocionalmente para “conseguir” um filho.

Entrementes, este instrumento representa uma importante ferramenta prática de consolidação de inúmeras garantias constitucionais de crianças e adolescentes. Sem dúvidas, éa medida judicial maisbenéfica para o menor,pois representa uma intervenção estatal célere e eficaz na defesa dos direitos e garantias de crianças e adolescentes em situação de risco,as quaiscolocam em xeque, com veemência, a incolumidade físicae psicológica da criança.

Sob um viés consequencialista, a preocupação dos críticos à legalização da adoção intuiutu personae de que a medida possa fomentar um “mercado” de crianças, estimulando-se a comercialização de crianças e gravidez, tais atitudes sempre ocorreram de forma não legalizada e continuarão a ocorrer, ao passo da legalização. O que se busca, sobretudo, é a regularização do vínculo afetivo existente, que não pode simplesmente ser desprezado ante a uma burocracia ululantedo processo deadoção.

Tem-se por absoluto, portanto, que o afeto deva ser sempre parâmetro, paradigma, base, fundamento e estrutura para decisões que norteiam a seara familiar. O consequencialismo, por sua vez, tem o papel de nortear as decisões no sentidode valorizar asrelações afetivas, os vínculos de afetoe carinho,verificando- se a existência real desses sentimentos e desejos, a fim de evitar que os institutos sejam deturpados em sua essência ou finalidade.

5.4 Ainterpretação consequencialista do STF, no julgamento daADPF 132ea

No documento DA AFETIVIDADE NAS RELAÇÕES (páginas 85-88)