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A realização deste trabalho permite elaborar constatações em pelo menos três níveis de reflexão que envolvem: a estruturação das relações sociais de gênero; a relação entre o trabalho desenvolvido pelas mulheres e a conservação da biodiversidade de forma direta; e um conjunto de outras contribuições sociais e comunitárias relativas às práticas, experiências e saberes dessas mulheres, que, de forma indireta, também contribuem para a conservação da biodiversidade.

No campo da estruturação das relações de gênero, possibilita a confirmação da existência de uma sociedade injusta e desigual entre homens e mulheres, a começar pelas atividades, responsabilidades e importância atribuídas a cada um/a.

Na comunidade Alagoinha, a exemplo da realidade presente no meio rural brasileiro, as mulheres trabalham por muito mais tempo e em maior número de atividades que os homens, mesmo não tendo seu trabalho reconhecido e valorizado na família e na comunidade. O trabalho desenvolvido por elas, mesmo aquele realizado nos mesmos espaços socialmente considerados como de trabalho masculino, como o roçado, é, na maioria das vezes, negligenciado.

Não há sentimento de justiça na divisão de papéis e responsabilidades entre os sexos existente na comunidade, mas há um certo sentimento de conformismo e obrigação, em especial em relação às funções atribuídas às mulheres, o que remete à idéia de uma imutabilidade nessa estruturação.

Por outro lado, estão presentes também, na fala das mulheres, algumas reflexões e posicionamentos mais elaborados diante dessa situação, numa demonstração de crítica ao status quo estabelecido e desnaturalização da própria divisão sexual do trabalho, possível efeito, dentre outros fatores, da intervenção qualificada com enfoque em gênero de organizações e movimentos sociais atuantes na região. No entanto, essas ações ainda estão longe de romper com as injustiças entre homens e mulheres construídas na comunidade, necessitando, para tanto, do desenvolvimento de inúmeras outras estratégias de ação nesse campo, em especial do envolvimento do poder público.

O trabalho desempenhado pelas mulheres apresenta ainda um outro viés de análise. Representa, para elas, a realização de trabalho físico e distração mental, e a valorização pelo cumprimento eficiente de suas atribuições, vista a partir de uma ética do trabalho, onde ganha importância do ponto de vista social, embora essa valorização não se configure em ações

concretas e justas entre os sexos, mas apenas incorpore ainda mais carga de trabalho sob a responsabilidade das mulheres.

Do ponto de vista da relação entre o trabalho desenvolvido pelas mulheres e a conservação da biodiversidade de forma direta, merecem importância as constatações elaboradas em torno da ação desenvolvida pelas mulheres na área do quintal ou “arredor de casa”.

Sendo apenas um dos subsistemas pelos quais as mulheres são responsáveis e trabalham, os quintais são espaços caracterizados por uma ampla diversidade de plantas que possuem as mais variadas formas de usos e aproveitamento sustentável. Embora construídos em áreas pequenas, com tamanhos que variam de menos de meio hectare até um hectare de área, em geral, foram registradas mais de 289 etnoespécies de plantas nessas áreas, sendo a maioria, ou 93% dessas, plantas cultivadas. A média por quintal é de 37 etnoespécies de plantas diferentes, onde 35% dos quintais apresentam mais de 40 etnoespécies.

Situado no espaço ao redor de casa, considerado parte da área doméstica ou privada, socialmente destinada às mulheres como espaço da reprodução, os quintais são, na prática, espaços muito produtivos. A ação de criar o quintal e manejar fica, na grande maioria das vezes, sob responsabilidade das mulheres, que plantam, regam, adubam, podam e atuam contra ataques de insetos e de animais.

O espaço dos jardins é uma área bem valorizada entre as mulheres da região, que para além de espaços ornamentais e decorativos se configuram enquanto espaços de estímulos às sociabilidades locais e regionais, a partir das relações efetivadas a partir das doações e trocas de sementes e mudas, e de conservação da biodiversidade, pela aclimatação de espécies nativas e exóticas, além de ser espaço de elevação da auto-estima das mulheres, que refletem na beleza das flores dos jardins a beleza que a própria vida contém.

Soma-se a isso a forte contribuição dessas áreas para a saúde e alimentação familiar e comunitária, visto que a maior parte das etnoespécies constantes ou típicas nos quintais é composta de alimentares e medicinais, utilizadas para consumo doméstico, e em alguns casos comercializadas.

Ressalta-se, nos processos de preparo de determinados alimentos em tempos de grandes colheitas a capacidade organizativa das mulheres em realizar trabalho coletivamente. Além dos produtos do trabalho propriamente ditos, esses momentos se configuram enquanto grandes espaços de intercâmbios de práticas e saberes, importantes para a transmissão às futuras gerações e construção de novos conhecimentos.

O conjunto de contribuições decorrentes das práticas cotidianas realizadas pelas mulheres no espaço dos quintais são ações que, na maioria das vezes, passam despercebidas pelos olhares passageiros. Por trás de gestos simples como guardar uma semente, preparar uma infusão com ervas ou extrair uma muda de planta na passagem do caminho, há um conjunto de contribuições e saberes que merecem ser evidenciados e valorizados que contribuem para as diversidades, sejam elas biológicas ou culturais.

Por todos esses elementos “Pra não dizer que não falei das flores”, longe de ser um estudo que trata das flores, enquanto estigma da mulher “doce”, “frágil” e “romântica”, traz para o debate as importantes contribuições do ponto de vista social, ambiental, econômico e político desempenhadas pelas mulheres no semiárido pernambucano.

As flores tratadas aqui, para além da beleza que o otimismo vê na vida, mesmo com tantos espinhos, representam aqui as diversidades de vida, de cultura, de símbolos e experiências, expressas nas distintas cores, formatos, dimensões e usos.

Assim, a importância da realização deste trabalho reflete-se diretamente no conjunto de informações que o mesmo consegue trazer, e ao mesmo tempo, do conjunto de informações que o mesmo suscita que ainda sejam geradas.

Longe de se constituir uma obra completa e finalizada, a pesquisa desenvolvida nos aponta elementos indicadores da contribuição do trabalho desenvolvido pelas mulheres rurais no manejo e conservação da biodiversidade, deixando inúmeras questões de serem aprofundadas aqui, pelas limitações de tempo, capacidade teórico-prática, e mesmo por opção própria de delimitação da pesquisa. Questões essas que podem e devem ser alvo de pesquisas posteriores.

De forma geral, este trabalho se configura, enquanto estratégia social de construção de relações sociais de gênero mais justas, na medida em que efetiva o resgate e valorização do papel desempenhado pelas mulheres enquanto gestoras ambientais e produtoras de bens e saberes.

Nesse sentido, a constatação da valiosa contribuição das mulheres na conservação e manejo da biodiversidade não deve ser usada como argumento para atribuir-lhes mais uma responsabilidade direcionando a elas a tarefa de “salvar o planeta”, mas reconhecer esse papel desempenhado, no sentido de valorizar suas práticas, reconhecendo a importância de seu trabalho, suas experiências e saberes, incorporando essas ações às políticas sociais de gênero e favorecendo a geração de ações e políticas públicas de promoção e apoio dessas práticas, no

sentido da construção de mudanças reais e mais justas nas relações entre homens e mulheres: eis o desafio aqui lançado.

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