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4.1 Uma leitura de “Deus caritas est”

4.1.1 Considerações filosóficas e teológicas fundamentais

O fundamento filosófico primário desta encíclica e da doutrina social da Igreja em geral, sobretudo no que tange ao direito natural, encontra-se na filosofia escolástica, de modo especifico, em Tomás de Aquino. Sua obra é, implícita ou explicitamente, citada praticamente em todas as encíclicas, “constitui a base e a fonte de inspiração de todo ensinamento social

da Igreja”179.

Segundo este fundamento filosófico escolástico-tomístico, a fé (revelação) e a razão não se contradizem nunca: a fé requer a razão e a razão necessita da fé. Assim, a doutrina católica se baseia em dados e princípios da razão que a revelação cristã somente reafirma e completa. Natureza e graça não são duas realidades totalmente separadas, mas são como que dois caminhos diferentes que tendem sempre a convergir para o mesmo lugar. Essa relação necessária entre os planos da criação e da redenção, da natureza e da graça, da razão e da fé é possível, segundo a Igreja Católica, devido ao fato de os dois planos diversos, embora complementares, originarem-se do único e mesmo Deus: o mesmo Deus criador de todas as coisas é o que revela os mistérios da fé e dota o ser humano de luz da razão. Portanto, a fé e a razão, segundo a doutrina católica, provêm de uma mesma e única origem.

[…] os ditames do direito natural e as verdades da revelação promanam por diversos trâmites da mesma fonte divina como duas correntes de água não contrárias, mas concordes; e porque a Igreja, guarda da ordem sobrenatural cristã, em que concorrem a natureza e a graça, deve formar as consciências, inclusive as daqueles que são chamados a encontrar as soluções dos problemas e deveres impostos pela vida social.180

178 Este conceito é utilizado aqui conforme Max Weber o utiliza em “A ética protestante e o espírito do

capitalismo” quando diz que há entre algumas concepções religiosas e o modo de vida capitalista uma afinidade eletiva. Weber não define com precisão este conceito, embora transpareça o que ele quer dizer no contexto de sua argumentação.

179 VAN GESTEL, 1956: 60. 180 PIO XII, 1998: 85s.

É necessário, porém, deixar claro que, para a doutrina católica, a fé, embora não prescinda da razão, consegue enxergar mais (os mistérios insondáveis de Deus que ultrapassam o entendimento humano) e melhor (possibilita à razão uma certeza moral que, por si, não é inacessível a ela, mas que, devido às paixões humanas desordenadas, torna-se de difícil assimilação e compreensão).

A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio.181

Uma relação equilibrada entre fé e razão, segundo a Igreja, livra o mundo de propostas extremistas, tanto religiosas como seculares, que freqüentemente se impõem como a panacéia das questões sociais: patologias da razão – o homem como um produto, como um meio, ou seja, a instrumentalização presente nas ideologias totalitárias (nazismo, facismo, comunismo, capitalismo etc) – e as patologias da fé – o fundamentalismo e o terrorismo de diversos matizes. Isso constitui uma preocupação dos dois últimos pontificados e fica patente, mais uma vez, na primeira encíclica do atual pontífice, Bento XVI.

A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar retamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado.182

Essa apresentação se faz importante uma vez que toda intervenção da Igreja na área social terá esse princípio regulador por fundamento: o diálogo entre fé e razão. Cada instância em sua própria área de circunscrição e competência. Em “Deus caritas est”, no entanto, Bento XVI parece não apelar para um impessoal direito natural. Ao contrário do que é comum na tradição social católica, Bento XVI não cita, em nenhuma parte da encíclica, a expressão direitos naturais. É evidente que se pode afirmar que o princípio do direito natural está implicitamente posto em “Deus caritas est”, sobretudo no que tange aos princípios permanentes da DSI, que são reafirmados na encíclica. Porém, no seu aspecto dinâmico, no

181 BENTO XVI, 2006: 48. 182 Ibidem, p. 47.

campo das motivações das ações, ele prefere apelar não para a autoridade da lei natural impessoal, mas para a dinâmica da dádiva no contexto de uma fundamentação bíblica neo- testamentária.

A ênfase ou o primado da dádiva parece ser uma novidade em termos de ensinamento social católico. Ao que parece, Bento XVI procura refletir sobre outra possibilidade, além do direito natural, de fundar o discurso social católico no nível das motivações. Isso se pode inferir da argumentação da própria encíclica, bem como em outro

texto183 no qual o então cardeal Ratzinger (atual papa Bento XVI) destaca a insuficiência do

direito natural como fundamento ético universal para o diálogo. Ele afirma, no discurso que fez na Academia Católica da Baviera, que o direito natural, apesar de ser um argumento tradicionalmente utilizado na Igreja Católica na busca de uma razão comum, é “um

instrumento que perdeu o gume, razão pela qual”, diz ele, “não pretendo valer-me dele

[…]”.184 Ele afirma que a idéia de direito natural pressupõe uma noção de natureza que esteja

em consonância com a idéia de razão, mas essa concepção da natureza se tornou solapada pela vitória da teoria da evolução. Mesmo que se tenha de diferenciar o intelectual Joseph Ratzinger e o líder espiritual da Igreja Católica, Bento XVI, é possível utilizar as ponderações do então cardeal como argumento secundário para reforçar a tese de que há um primado da dinâmica da dádiva na argumentação desenvolvida na encíclica de Bento XVI, nas quais as argumentações baseadas no direito natural ocupam somente o segundo lugar.

Essas considerações preliminares se devem a razões de ordem analítica e

hermenêutica, necessárias para a compreensão das motivações intrínsecas que norteiam o magistério social da Igreja Católica. Muitas delas têm uma forte conotação filosófica e teológica, fugindo da tradicional perspectiva sociológica. No entanto, embora não se queira aprofundar essas questões de natureza teológica e/ou filosófica neste trabalho – que deseja ser de natureza sociológica –, não se pode omiti-las sem claro prejuízo ao entendimento das questões que serão propostas adiante.

183 HABERMAS; RATZINGER, 2007. Esse livro foi organizado por Florian Schüller a partir do debate público

entre Habermas e Ratzinger ocorrido em 19 de janeiro de 2004 na Academia Católica da Baviera, em Munique.