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Considerações Finais: A chama não tem pavio

No conturbado cenário político vivido pelo país, as canções do Clube da esquina construíram um conjunto vigoroso de idéias e valores a partir da combinação entre ambição intelectual e contestação política empreendidas por seus compositores. Canções que contrariavam o sentimento coletivo de fracasso e impotência política disperso no país, principalmente, após a promulgação do Ato Institucional N° 5, de 1968, ao apresentar à cena pública novas possibilidades de ação expressas pela evocação de alternativas de futuro. Ao contrário da Tropicália que “dispôs em cena as relíquias do Brasil”, o Clube da esquina desafiou a desordem das lembranças de um Brasil em ruínas, transmitindo novas esperanças presentificadas por canções carregadas de radicalidade crítica.

Em termos de novidade sonora, o Clube da esquina alterou significativamente os rumos da canção popular brasileira, oferecendo à mesma novas tonalidades que se reinventavam entre harmonias e notas musicais. Experimentação que colocou em cena uma estrutura complexa e sofisticada, onde procedimentos sonoros distantes fluíam através de um pacto refinado. A obra empreendida por esse grupo revelou sinais de uma fusão entre versos e sons desenvolvida em torno de um equilíbrio dinâmico e espontâneo, nutrido a partir da conjugação de influências musicais tão diversas quanto irreconciliáveis.

As raízes culturais negras, a tradição musical das cidades do interior mineiro, o diálogo com a canção latino-americana, o contato com os jazzistas norte-americanos, o acolhimento dos novos procedimentos sonoros criados a partir da bossa-nova, além das influências do rock universalizadas pelos Beatles, constituíram um leque de possibilidades a serem experimentadas. Nova maneira de viver e experimentar a canção brasileira, o Clube da esquina surpreendeu o país ao combinar, de maneira inovadora, o que havia de mais

atual e surpreendente em circulação pelas capitais do mundo com os particularismos da base cultural mineira de fundo arcaico e provincial.

Durante as décadas de 1960 e 1970, o Clube da esquina, através de suas canções, demonstrou que, diante do perigo que supunha a perda da liberdade presente, havia também a necessidade de sonhar um futuro possível. Contudo, para enfrentar a ditadura militar era preciso reconquistar a cidade enquanto espaço de realização política, exercício que prima pela consciência que aproxima os homens pela reciprocidade entre iguais e que apenas a existência comum fundada no sentimento de pertencimento é capaz de produzir.

A partir dessa tentativa de reencontro com o bem comum, o Clube da esquina construiu uma linguagem musical que buscou revitalizar o espaço próprio à cena pública que o grupo pretendeu fixar no presente.

Nesse sentido, as canções do Clube da esquina, além de possuir um significado, podem ser entendidas como uma ação intencional decorrente da necessidade de reagir defronte a uma realidade política hostil. Seja através da utilização de recursos retóricos como a metáfora, a citação, a sátira; seja através da mobilização de princípios, valores ou idéias ausentes em seu tempo, os compositores podem ser tidos como atores políticos, na medida em que fizeram uso da canção como uma espécie de instrumentos de combate ético. É certo que uma canção possui vários significados, inclusive, distantes daqueles intencionados por seus autores. No entanto, através da crítica, o repúdio ou a negação de uma determinada conjuntura, realizadas por um compositor, é possível avaliar o posicionamento e as ações efetivadas por ele frente aos debates da época. Em se tratando do Clube da esquina, verificamos que durante a sua trajetória musical, o grupo elegeu três grandes enfoques específicos: a amizade, a narrativa viajante e a utopia das cidades ideais.

Quando indagados sobre o surgimento do Clube da esquina, seus integrantes não hesitam ou divergem em suas declarações: a amizade estaria tanto na origem como seria também a mola propulsora da obra conjunta realizada por esses compositores. A amizade nasceu, portanto, antes de qualquer canção. Segundo eles, as esquinas de Belo Horizonte proporcionavam os mais diversos tipos de encontros. Em uma delas, se deu o encontro entre a amizade, os sonhos de liberdade e as canções. Porém, a amizade pensada aqui não se restringe a um fenômeno próprio da intimidade. Ao contrário, o espírito associativo que fundamenta a relação entre amigos com interesses voltados para a realização do bem comum seria a base para reinvenção da política e a busca pelo bem-estar na cidade.400

Em muitas canções, os integrantes do Clube da esquina vestiram, sem cerimônia, “os trajes do viajante”. No papel de narradores, os viajantes são aqueles que “vêm de longe e têm muito por contar”. Enquanto caminham, eles recolheram histórias de cidades perdidas e tempos esquecidos, reunidos em um processo de re-significação da realidade, no qual o moderno e o arcaico foram flagrados em encontros fortuitos.401 Essas “iluminações profanas” foram observadas e cantadas pelo Clube da esquina através de um tipo especial de linguagem: a narrativa viajante.

Esse viajar, contudo, se tornou maior do que qualquer viagem, pois visou mais que transpor distâncias tão grandes quanto os Gerais. Diante dos obstáculos dessa grandeza física, os olhares desses compositores assumiram o prisma da busca. Este é o olhar de quem não se cansa de descobrir o “novo no velho e o velho no novo”, como um estrangeiro ou

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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2002; ARENDT, H. Sobre a humanidade em tempos sombrios, 1987; CHAUÍ, M. O mau encontro, 1999; MATOS, O. Ethos e amizade: a morada do homem, 2001. ORTEGA, F. Genealogias da amizade, 2002.

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como se tivesse mesmo “olhos de criança”402. Durante o seu caminhar, os viajantes do Clube da esquina decifraram o mundo através de versos, sons e imagens inscritos em um presente que não se limitou ao poder da distância, mas que se abriu à vertigem do tempo.403

Segundo Renato Lessa, “cidades sem repúblicos são ruínas vazias e sem espírito; repúblicos sem cidades são seres exilados, passageiros de uma diáspora sem fim”.404 Por essa razão, se deva a presença, nas canções do Clube da esquina, do desejo freqüente de empreender viagens em busca de cidades envoltas pela imaginação de uma vida melhor. Nas canções do Clube da esquina, a antiga “utopia das cidades ideais” ganhou novos contornos e cores por meio da linguagem musical do Clube da esquina. Concebidas como obra de arte, as cidades ideais emergem, de tempos em tempos, através da imaginação de artistas como um contraponto necessário para a reflexão acerca dos problemas enfrentados pelos habitantes da cidade real.405

Na luta contra o cerceamento do cidadão e a restrição da liberdade, o Clube da esquina tramou a resistência, conjurando idéias com o propósito de intervir na cena pública, agindo, sobretudo, sobre a “alma dos cidadãos”, para estabelecer na realidade os alicerces de seus sonhos e fantasias. Nesse contexto, a utopia das cidades ideais, disseminada através de uma narrativa oblíqua, se tornou o “ponto de encontro entre o pensamento político e o pensamento estético”. 406

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ROUANET, S. A razão nômade: Walter Benjamin e outros viajantes, 1993.

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CARDOSO, S. O olhar do viajante (do etnógrafo), 1995.

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LESSA, R. As cidades e as oligarquias do antiurbanismo da elite política da primeira república brasileira, 2003.

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ARGAN, G. Cidade ideal e cidade real, 1993. BRANDÃO, C.A.L A República da Arquitetura, 2003.

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