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A ODISSÉIA PARA CRIANÇAS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Montado no meu cavalo libertava Prometeu toureava o minotauro era amigo de Teseu viajava o mundo inteiro nas estampas Eucalol à sombra de um abacateiro Ícaro fugia do sol

Subia o Monte Olimpo ribanceira lá do quintal mergulhava até Netuno no oceano Abissal São Jorge ia pra lua lutar contra o dragão São Jorge quase morria mas eu lhe dava a mão e voltava trazendo a moça com quem ia me casar era a minha professora que roubei do rei Lear.

(Hélio Contreiras, Estampas Eucalol19)

19 Até 1957, as Estampas Eucalol acompanhavam os produtos da Perfumaria Myrta. Uma das séries de estampas foi a

Toda pesquisa é um pouco como a viagem de Odisseu rumo a Ítaca: a busca do porto a que se quer chegar exige a superação de obstáculos, às vezes tão complicados como os monstros e desafios que o herói precisou vencer.

As dificuldades que me propus a enfrentar foram basicamente duas: fazer um levantamento, de forma mais panorâmica, da presença da mitologia grega na literatura para crianças no Brasil, bem como buscar conhecer alguns projetos editoriais elaborados pelas editoras, buscando entender as estratégias utilizadas por elas com a intenção de manter o interesse dos leitores pelos mitos.

A análise de duas versões infantis da Odisséia mostrou que os projetos editoriais pensados para adaptar mitos gregos para crianças são diferentes e resultam de muitas estratégias e intervenções. Em ambos os projetos, porém, as decisões são orientadas pela imagem de um leitor infantil, escolar, contemporâneo, afastado temporal e culturalmente do universo grego e que por ter pouca experiência precisa ter sua leitura guiada e controlada passo a passo.

As duas versões contam, conforme tradição nas obras adaptadas para o público infantil, com a figura de um mediador, incumbido da simplificação do texto através de cortes, supressão de episódios, atualização e adequação da linguagem. Este mediador é o adaptador, que não apenas exclui, mas também conserva determinadas cenas e personagens, consideradas essenciais para a compreensão da trama.

Nessa tarefa de adequar a obra ao público infantil, o trabalho do adaptador vem acompanhado por projetos editoriais que acrescentam notas de rodapé explicando a cultura grega, ilustrações, mapas e outras marcas reveladoras de um trabalho de maquinaria do pólo da produção, que quer que o texto seja legitimado, daí a necessidade de evidenciar sua proximidade com o texto primeiro.

As obras, deste modo, são remodeladas para responder às necessidades do público a que se destinam. Segundo Chartier (1996, p. 100), trata-se de atualizações que se fazem principalmente pelos dispositivos tipográficos, que

têm, portanto, tanta importância, ou até mais, do que os ‘sinais” textuais’, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam,

traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores.

As adaptações infantis da Odisséia se constituem no que Chartier (2001, p. 102) chama de uma rede de textos, por apresentarem algumas características em comum: 1) pertencem a uma série – de aventura ou de adaptações de clássicos diversos; 2) são obras que se identificam com outras também quanto ao gênero (narrativa de aventura); e 3) são utilizadas em um mesmo campo de práticas – dentro da escola e de uma tradição pedagógica de trabalhar com a literatura.

Sendo assim, é esta unidade apresentada pelas obras que faz com que sejam reconhecidas como um corpus portador de um sentido determinado pelo conjunto, dado as semelhanças textuais e de suporte, que fazem com que um texto seja reconhecido como de “literatura infantil”.

Os modernos editores da Ática, Cia. das Letrinhas, FTD, Scipione e de tantas outras editoras que olham para o público escolar e infantil, acima de tudo reorganizam os textos que escolheram imprimir em função dos leitores que desejam ou pensam alcançar, de forma semelhante ao que faziam os editores de Troyes. (Ibidem, p. 102).

De Jasão e o Vellocino de ouro aos nossos dias, o interesse despertado pelos deuses e heróis gregos parece permanecer vivo, apesar das transformações sofridas pela sociedade, pela escola e pelo mercado editorial responsável pela divulgação da literatura infantil.

Segundo Lajolo e Zilberman (1987, p. 18)

(a literatura infantil) tem características peculiares à produção industrial, a começar pelo fato de que todo livro é, de certa maneira, o modelo em miniatura da produção em série. E configura-se desde sua denominação – trata-se de uma literatura para – como criação visando a um mercado específico, cujas características precisa respeitar e mesmo motivar, sob pena de congestionar suas possibilidades de circulação e consumo.

Ainda de acordo com estas estudiosas, “a ficção para a infância engloba um elenco abrangente de temas que respondem a exigências da sociedade, ultrapassando o setor exclusivamente escolar”. (Ibidem, p. 76, grifo meu).

Com referência à permanência da mitologia grega nas obras publicadas para crianças contemporaneamente, pode-se perguntar a quais destas exigências da

sociedade procuram responder, o que pode ser buscado através de um olhar para a escola, espaço privilegiado em que estas obras circulam.

O que parece pairar acima de todas as escolhas editoriais ligadas à publicação das obras consideradas clássicas - e os mitos parecem fazer parte desse nicho - é a necessidade de iniciar a inserção das crianças no mundo de uma cultura humanística, reconhecida e valorizada pelos adultos responsáveis pela educação das novas gerações.

O interesse dos programas escolares pelos mitos gregos talvez se dê pelo fato de estes fazerem parte do tecido da cultura dita universal, constituindo-se em ferramentas que permitem o acesso, a compreensão e a interpretação de determinada herança cultural acumulada pela civilização ocidental, estando incorporados à literatura e às artes em geral.

Sendo assim, os mitos permanecem porque acabam sendo parte da estratégia de oferecer diversidade de gêneros textuais durante a formação de jovens leitores, através de diferentes fórmulas editoriais. É inegável, ainda, o fato de que isso ocorre porque há um discurso que os legitima, cujos representantes são escritores como Monteiro Lobato, Ruth Rocha e outros, que respondem aos anseios de pais, professores e educadores em geral, que reconhecem a importância dos mitos como parte de uma cultura que deve ser valorizada.

O dragão poderoso que guarda o Velocino de ouro no mito de Jasão e os argonautas; os monstros, sereias e gigantes que Odisseu deve derrotar na Odisséia, seriam elementos presentes, de forma sempre modificada, em narrativas, poemas, letras de música e outras manifestações artísticas, produto do imaginário humano.

A mitologia grega tem sido referência para a cultura européia e para a nossa, portanto, conhecer personagens como Odisseu, Narciso, Hércules, Zeus, Afrodite e Atena, entre outros, é ter acesso ao universo artístico do ocidente, uma vez que estão presentes na escultura, na pintura, na literatura e, modernamente, no cinema e até na publicidade.

Lajolo (2001, p. 50) afirma que a cultura grega “sobrevive também na herança cultural que permeia nosso hoje e, de forma talvez mais viva, nas sucessivas re- interpretações que seu modo de vida inspirou, e parece continuar inspirando”.

A permanência dos mitos gregos na literatura infantil, desse modo, parece responder principalmente a uma necessidade da escola: transmitir uma certa cultura, um conhecimento que é socialmente valorizado e ao qual estão ligadas as obras clássicas, seja Shakespeare, Cervantes ou Homero.

Se a transmissão dessa teia de significados culturais, formada pelos deuses, ninfas e histórias fantásticas dos mitos gregos presentes no imaginário cultural e social, pode se dar através da exploração do interesse infantil pelas narrativas de aventura, melhor para editores, pais e escola.

Portanto, é legítimo supor que o interesse do leitor infantil pelos mitos provavelmente permanecerá por mais tempo, porque na sociedade contemporânea ainda persiste a crença, legitimada por diferentes instituições e presente no imaginário social e cultural, de que os mitos são narrativas que “justificam o homem e sua relação com o mundo e com a vida”. Uma vez aceita esta idéia, diversos sujeitos, entre eles os editores atuais, investem na publicação dos mitos, ainda que com novos projetos editoriais.

Enquanto os mitos forem identificados como conhecimento socialmente valorizado, é preciso concordar com Bourdieu (2001, p. 24), quando afirma que “(...) entre as condições que devem ser preenchidas para que um produto intelectual seja produzido, está a produção da crença no valor do produto”.