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O acolhimento é um tema que vem sendo bastante discutido no âmbito dos processos de produção de saúde e, nos últimos anos, vem ganhando destaque nas políticas de saúde, em razão da necessidade verificada de modificar as práticas de saúde na direção de relações mais humanizadas entre os sujeitos que compõem o universo do trabalho em saúde.

Uma vez que o processo de construção do SUS demonstra, em seus vinte anos de existência, que a cobertura dos serviços de saúde vem sendo progressivamente ampliada, o foco da discussão para que se garanta os princípios do SUS e o direito à saúde de modo a se promover uma verdadeira democracia, passa a ser deslocado para a qualidade dos serviços prestados.

Nesse sentido, a discussão sobre o acolhimento não está restrita à problemática do acesso aos serviços, mas diz respeito aos modos como se dá esse acesso, remetendo à “acessibilidade”. Nesta perspectiva, levanta-se a discussão sobre o protagonismo dos sujeitos envolvidos e a construção de autonomia nos processos de produção de saúde que se dão na inserção dos usuários “dentro” dos serviços, destacando-se as relações que são estabelecidas entre estes e os trabalhadores de saúde.

Ao se discutir acolhimento, procuramos interrogar as relações de trabalho que se produzem entre os próprios trabalhadores, vislumbrando-os como trabalhador coletivo capaz de fazer a gestão do seu trabalho, exercendo a apropriação do próprio processo de trabalho e da capacidade de estabelecer relações ancoradas em uma ética de solidariedade e de compromisso com o outro.

Com a finalidade de aprofundar a questão do acolhimento e da qualidade das relações que se dão nos serviços, acompanhamos o cotidiano da Unidade de Saúde da Família da Ilha do Príncipe, seguindo uma abordagem cartográfica, com o objetivo de analisar discursos e práticas relacionados ao acolhimento que se engendram naquele serviço. Foi realizada também uma sistematização de documentos oficiais sobre o acolhimento e feitos estudos na literatura técnica a respeito deste tema.

Destacamos que a escolha por acompanhar um serviço de Atenção Básica se justificou pela preponderância que este nível de organização dos serviços vem assumindo como lugar de reversão do modelo tecno-assistencial na saúde pública, através, principalmente, do Programa de Saúde da Família.

Tomamos como “analisadores” da questão do acolhimento na USFIP os processos de trabalho e as relações trabalhador-usuário, sobre os quais discorremos, a fim de explanar os resultados produzidos nesta pesquisa.

A organização dos processos de trabalho na USFIP é burocratizada e fragmentada, denotando divisão entre planejamento e execução, e uma separação entre a gestão do trabalho e atenção prestada.

Embora haja um discurso de qualificação do serviço expresso pela SEMUS, permanece a focalização principal na produtividade do trabalho das equipes, com vistas a atender às determinações do nível central.

A respeito do trabalho em equipe, nota-se que há intenção de se rever os processos de trabalho por parte dos trabalhadores, mas isto não condiz com as ações postas em prática, as quais remetem a uma funcionalidade dos serviços, ou seja; cada “parte” deve funcionar “bem” na sua relação com o “todo”, o serviço. Assim, a USFIP não é vivenciada como “arena” em que o jogo de forças entre os sujeitos expressa suas intencionalidades.

Embora se reconheça as “falhas de comunicação” entre os trabalhadores, a racionalidade que rege a comunicação entre as equipes não é questionada, sendo os espaços de conversações entre os trabalhadores (como por exemplo, as reuniões de equipe) destinados à discussão de questões administrativo-burocráticas. Os conflitos que atravessam as relações de poder e a hierarquização nos serviços não são discutidos, assim como as dificuldades dos trabalhadores nas relações entre si.

No tocante ao acolhimento, a exigência que os trabalhadores sofrem para que atendam a índices de produtividade é um aspecto que compromete a qualidade da relação entre as equipes e destas com o usuário, afetando tanto o atendimento às necessidades destes quanto a própria oferta de ações de saúde. As necessidades de saúde dos usuários parecem ser encaradas conforme o nível de competência técnica de cada profissional e o tensionamento oferta-procura não é problematizado. Assim, o acolhimento constitui-se em uma “atividade” realizada pelos auxiliares de enfermagem, conforme uma escalação destes profissionais, feita mensalmente pelas enfermeiras. Nesse sentido, a prática do acolhimento está

circunscrita a uma atividade que se dá na recepção ou nos “postos” de trabalho onde atua o auxiliar de enfermagem. Há um entendimento de que o acolhimento depende de conhecimento técnico, estando em associação direta com práticas de Avaliação Inicial (Avaliação e Classificação de Riscos), podendo ser considerado, também, como uma etapa do processo de triagem.

Quanto à relação entre trabalhadores e usuários percebemos, no cotidiano, que as necessidades que os trabalhadores esperam “acolher” estão circunscritas à questão da doença ou do sintoma manifestado fisicamente.

Por outro lado, demonstrou-se tanto na ótica do trabalhador quanto do usuário, que ir ao serviço para “conversar” constitui-se em uma demanda valorizada pelos usuários e, embora se dê forma limitada, é acolhida por alguns trabalhadores.

Constatamos também que a atuação segundo o modelo do PSF não é suficiente para garantir o acolhimento, pois tal modelo privilegia as ações programáticas, secundarizando as demandas “inesperadas”, que se constroem em ato, no serviço. Mesmo neste modelo, o trabalho de atenção à saúde na USFIP evidencia que está assentado no uso de recursos oferecidos pelas tecnociências. Nesse sentido, a avaliação do profissional costuma se sobrepujar às avaliações feitas pelos usuários sobre sua própria saúde, o que nos faz concluir que as ações definidas no cuidado não são pactuadas.

Entretanto, percebemos que experiências de tensionamento entre trabalhadores e usuários, ambos entendidos como protagonistas da produção da saúde, forçam a problematização de outras formas de agir em saúde, como a criação de projetos terapêuticos específicos, fazendo com que a ação de acolhimento deixe de ser apenas pontual para se desdobrar em outras ações no interior do serviço.

Assinalamos que esta pesquisa focalizou-se no modo como se entende e se faz acolhimento naquele serviço de saúde e não na produção de “verdades” sobre o acolhimento. Da mesma maneira, não esperávamos encontrar uma determinada “forma pronta de acolher”, ou mesmo, encontrar qualquer “sistemática” de acolhimento homogênea instituída. Nosso intuito consistiu em “cartografar” o tensionamento entre os discursos instituídos, os discursos protocolares, os discursos tradicionais sobre acolhimento, e os discursos e práticas instituintes de acolhimento na USFIP, compreendendo que tais práticas instituintes nem sempre remetem a práticas a favor da vida e da alteridade.

Acreditamos terem sido “cartografadas” práticas territorializadas que expressam um modo hegemônico de produção de saúde, não apenas médico- centrado ou enfermeiro-centrado, mas “especialista-centrado”, na produção de ações relacionadas ao acolhimento, o que indica as concepções que se tem a respeito na visão dos sujeitos. Por outro lado, o cotidiano também expressou, em sua capilaridade, fluxos “impertinentes” e “escapes” que se dão na micropolítica do serviço. Estes fluxos e escapes ganharam forma nos modos de acolher (do trabalhador) e nos modos dos usuários de serem acolhidos, especialmente evidentes quando esses sujeitos ousavam construir outros modos de funcionamento, diferentes do previsto por uma norma funcional, acenando para as possibilidades de ressignificar o acolhimento no cotidiano da USFIP.

Assim, fica evidente a necessidade de reorganização dos processos de trabalho e de se engendrar subjetividades que apontem para uma certa humanização nos processos de produção de saúde, que estabeleça uma verdadeira relação de cuidado e valorize a singularidade existencial de cada um dos sujeitos envolvidos, de modo a se promover uma real democracia no acesso à saúde, na qualidade da assistência e na garantia dos princípios do SUS.

As análises expressam a singularidade e a localidade do território desta pesquisa: a USFIP e seu entorno. Entretanto, espera-se que contribuam para questionar a postura e as ações em saúde ligadas ao tema do acolhimento em toda a rede de AB do município de Vitória. Nesse sentido, acreditamos que se valorizadas e exploradas, as singularidades de cada território podem ser cooperativas para criar um “comum do acolhimento” a partir de suas diferenças, em direção a uma ética de humanização.