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No final do ano 2009, a sociedade baiana foi surpreendida pela imprensa local com informações sobre um caso que provocou comoção a grande parcela da sociedade brasileira. Uma criança de apenas dois anos de idade foi vítima de penetração de dezenas de agulhas de aço em seu corpo que, segundo as autoridades locais, seria responsável o padastro da criança e sua companheira. O caso ocorreu no município de Ibotirama, no Oeste baiano. As declarações das autoridades policiais que se ocuparam do caso informaram ainda que o ato de introduzir agulhas na criança tinha uma provável origem em práticas de “magia negra” ou “vudu”, como informou a imprensa local, a qual, inclusive, veiculava os nomes dos acusados geralmente acompanhado dos adjetivos: “pai-de-santo” e “mãe-de-santo”.363 Não me deterei aqui em analisar o caso no

aspecto da responsabilidade penal dos envolvidos, muito menos em sua dimensão de ritual de “magia negra”, à qual o mesmo tem sido associado. Chamou-me a atenção a repercussão deste caso no meio de comunicação de massa, a exemplo dos jornais, televisão e rádio. O fato era que a opinião pública, veiculada através destas ferramentas de informação, principalmente imprensa jornalística, não deixou de perpetuar a associação de atos criminosos aos rituais sagrados da religião afro-brasileira.

No caso em questão, o acusado e autuado judicialmente por ato criminoso, era identificado repetidas vezes como pai-de-santo, sacerdote da religião afro-brasileira, sem maiores critérios e cuidados de cometerem injustiça e promoverem prejuízo moral e social ao culto afro-brasileiro e aos seus adeptos. Ao ler os textos veiculados pela imprensa que acompanhava o desenrolar do caso me vinha a sensação de que eu já conhecia aquela narrativa. Na verdade, a narrativa jornalística e o texto policial me eram familiar,

363 Praticamente toda a imprensa baiana, inclusive feirense, informou sobre este caso. Para

esta reflexão consultei matérias veiculadas pelo jornal Correio e Jornal A Tarde, em suas versões impressas e on line.

eu parecia estar lendo as notícias de jornais ou peças dos processos criminais movidos contra os adeptos da mandinga da Princesa do Sertão dos anos 1940 e 1950.

Esta associação era tão explícita, no caso em questão, que incomodou as lideranças religiosas do candomblé baiano, como por exemplo, a Ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, localizado na capital baiana. As declarações da líder espiritual pode ser resumida com a afirmação de que “nenhum ritual do candomblé envolve maus tratos e agressões”. Comenta ainda Mãe Stella sobre os equívocos veiculados pela imprensa sobre o termo “vudu” associado ao ato criminoso: “o termo é usado por uma nação africana para chamar as entidades adoradas, os orixás. Não tem nenhuma relação com rituais feitos com agulhas".364

O que pode ser observado, a partir deste e outros casos que acontecem nos dias de hoje (não me refiro ao caso em si, mas as apropriações ideológicas) é a perpetuação de alguns elementos de estereotipação das práticas afro-religiosas e dos saberes mágico-curativos que caracterizavam a repressão policial no universo dos candomblés em Feira de Santana, no período estudado. Entretanto, na atualidade, os adeptos da mandinga também encontram suas formas de defesa e de afirmação de suas práticas. Formas estas, resultantes do acúmulo de experiência vivenciada ao longo da história, experiências fundamentadas na significação do passado.

No final dos anos 1930, por exemplo, um evento que revelou de forma sintomática os conflitos de ordem ideológica e cultural entre os diferentes segmentos sociais feirenses, foi o debate entre o poeta Aloísio Resende e um

364 “Mãe Stella comenta crime das agulhas”. In: A Tarde On Line, Salvador, 30/12/2009, [citado

em 08/03/2010]. Sugiro a leitura dos comentários de leitores que avaliaram esta matéria, pois será possível observar as diferentes opiniões acerca da associação do referido ato criminoso às práticas afro-brasileiras.

colunista do Jornal Folha do Norte, tendo como objeto a questão dos candomblés e curandeiros na “civilizada” Princesa do Sertão.365

Os ataques que fez o colunista aos candomblés e curandeiros não representavam uma opinião isolada em relação a outros membros do segmento de elite em Feira de Santana. Isto pode ser observado ainda nas cartas publicadas pelo mesmo periódico e assinadas por reconhecidos médicos da cidade que procuravam provocar as autoridades policiais e judiciárias no sentido de desempenharem maior esforço na repressão aos curandeiros locais. Os jornalistas também não perdiam a oportunidade de publicarem suas denuncias acerca dos candomblés e curandeiros na cidade cobrando dos prepostos da polícia um controle mais preciso sobre estes agentes. Entretanto, o paradoxal, era que nesse mesmo veículo de informação e formação de opinião havia espaço para as vozes discordantes das concepções das elites sobre estas questões. Estas vozes eram em número bem menor, com exceção, obviamente, do poeta Aloísio Resende. Este escritor, como foi observado ao longo da tese, implementou uma campanha de defesa dos candomblés na imprensa feirense que vai desde pequenas crônicas até as provocadoras poesias tratando sobre o universo afro-religioso, sempre exaltando seus rituais e valorizando seus personagens a exemplo dos sacerdotes e zeladores (ou curandeiros) dos candomblés locais.

Feira de Santana viveu nas décadas de 1940, 1950 e 1960 seu período de êxtase da modernidade implicando assim na modelagem do espaço urbano, estrutura arquitetônica e comportamento social. Feira de Santana seguia a experiência de outros centros urbanos brasileiros, os quais em seus projetos de modernização urbanística implicavam a idéia de civilidade e controle dos hábitos e costumes cotidianos de sua população. Neste universo não caberiam práticas de candomblé e curandeirismo.

365 Este caso foi bem representativo do objeto da tese e por esta razão o utilizei como

argumento de justificação do recorte temporal de investigação. Ver a discussão que desenvolvi explorando este caso no capítulo segundo.

Se os estudos de Aldo José Morais Silva e Clovis Frederico Ramaiana M. de Oliveira revelaram como a idéia de modernidade, civilidade e progresso se configuraram nas primeiras décadas do século XX, na busca de uma identidade social para Feira de Santana, Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira evidenciou estas questões ainda em meados do século XX.366 Esta

autora acredita que no final dos anos 1960, por mais que houvessem diferentes representações da cidade, em relação às primeiras décadas do século, prevaleciam as imagens de cidade comercial e civilizada.367 Estas concepções

se perpetuaram alcançando o período por mim trabalhado e a narrativa que aqui se finda oferece alguns exemplos desta perpetuação. As denúncias contra as práticas de curandeirismo implicando na humilhação dos agentes e ridicularização do culto afro-brasileiro, por exemplo, estavam carregadas de termos que adjetivavam estes atores sociais de forma pejorativa, entendendo- os como indivíduos que andavam na contramão do progresso e da civilidade. Mas estes agentes elaboraram os seus esquemas de resistência e as experiências processadas no agenciamento dessas resistências deixaram pistas, através das quais foi possível relatar aspectos de suas histórias.

Este trabalho evidenciou a repressão policial às práticas de candomblé e curandeirismo em Feira de Santana, como uma experiência que remete aos primeiros anos do século XX. Ao me dedicar a um recorte temporal específico, ou seja, aos anos correspondentes às décadas de 1940, 1950 e 1960, foi possível entender como essas experiências se processaram na Princesa do Sertão deste período, considerando ainda as formas de resistência aos dispositivos de repressão no universo dos candomblés feirenses. A conseqüência mais explícita da experiência de conflito entre o poder institucional (polícia, Estado) e as práticas afro-religiosas em Feira de Santana, deste período, pode ser evidenciada na constituição de uma mentalidade preconceituosa por conta das imagens que foram construídas historicamente sobre a associação do candomblé às práticas consideradas transgressoras. Isto pode ser evidenciado tanto na perspectiva da cultura jurídica como da própria mentalidade social das elites políticas, econômicas e letradas da

366 OLIVEIRA, 2000; SILVA, 2000; OLIVEIRA, 2008. 367 OLIVEIRA, 2008, p. 21.

Princesa do Sertão. Vale destacar, por exemplo, que as concepções jurídicas do período estudado, a exemplo das idéias do jurista Nelson Hungria, ainda valem como referência entre muitos dos atuais oficiantes da justiça baiana e, portanto, feirense. Isto se justifica pelo fato de que as mudanças político- jurídicas não são acompanhadas na mesma velocidade pelas mudanças de mentalidade.368 É exatamente por esta razão que os adeptos da mandinga

ainda estão sujeitos a interpretações equivocadas de suas práticas.

As considerações finais aqui redigidas estão distantes de representar a conclusão do trabalho em questão. Na verdade, significa mais o anúncio de um projeto que está por madurar. Isto foi evidenciado com a experiência da documentação levantada, pois aos poucos estão sendo descobertas de seus esconderijos as marcas, pistas, sinais de uma experiência histórica que passa agora a fazer parte do importante compêndio historiográfico que tem sido constituído pelos mais diferentes trabalhos que o conjunto de jovens historiadores estão produzindo e que tem revelado, cada vez mais, a saga de Feira de Santana, a Princesa do Sertão.

368 Sobre a concepção de tempo em sua relação com as mudanças sociais, políticas e mentais

FONTES