• Nenhum resultado encontrado

O enfraquecimento nos espíritos da ideia de eternidade coincide com uma aversão cada

vez maior ao trabalho prolongado. (Paul Valéry)

Encaminhamo-nos para o final desse estudo comparado sem, no entanto, empreender um definitivo, ou ainda, um ostensivo entrelaçamento entre as obras em cotejo. Contudo, o que aparentemente não se amarra, proporciona uma alavanca para muitas reflexões sobre ambas as obras interpretativas. Como observa Eduardo Coutinho: “a literatura comparada é hoje, uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibilidades de exploração, que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores e se erige como um diálogo transcultural, calcado na aceitação das diferenças” (COUTINHO, 2003, p.40). Desse modo, nosso foco, embora objetivasse o realce de aproximações, voltou-se constantemente para a focalização das diferenças ou incomunicabilidade entre os ensaios, registrando uma das “inúmeras possibilidades” da pesquisa comparada.

Em As raízes e o labirinto da América Latina,29 de Silviano Santiago, observamos também uma ampliação dos horizontes que o exercício de comparação proporciona. O fragmento a seguir elucida muito bem essa abertura: “Tal é o pano de fundo de que Sérgio se vale para poder jogar no palco do livro as concreções metafóricas do semeador e do ladrilhador, cujos traços psicológicos ajudarão a contrastar, respectivamente, o personagem brasileiro e o personagem hispano- americano” (SANTIAGO, 2006, p.80, grifos do autor). A comparação de Santiago se estabelece justamente no contraste entre as perspectivas das obras, e, partindo de pontos divergentes, tece suas relações de aproximação. Outra passagem do livro demonstra o aspecto contrastivo que o ato de comparar também contempla: “A escrita de El labirinto

de la soledad vai se definir pelo personagem que está situado no extremo inferior da

29 Estudo comparado desenvolvido por Silviano Santiago, tendo os ensaios As raízes do Brasil, de Sérgio

hierarquia social, ao contrário da escrita de Raízes do Brasil, que se definiu pelo personagem que detém em excesso o poder dito nacional (SANTIAGO, 2003, p.27, grifos do autor). Assim, oriundos de esferas diferentes na hierarquia social, os “personagens” de Raízes do Brasil e O labirinto da solidão também dialogam. Inúmeras outras aproximações contrastivas, entre a obra de Sérgio e Paz, compõe o estudo crítico de Santiago, mas por ora esses exemplos nos bastam.

Pautado nessa perspectiva que os estudos comparados contemplam, optamos por expor as duas obras centrais deste estudo, que são: A América Latina e Ariel, mantendo- as definidas em suas singularidades. Assim, procuramos iniciar a presente dissertação com um breve relato biográfico de ambos os autores, em seguida fizemos um levantamento da fortuna crítica de cada um no que concerne à recepção dos ensaios, bem como elencamos seus principais questionamentos e observações. Finalizado esse primeiro momento, somente então, partimos para o estreitamento entre as propostas interpretativas, apoiados nos recursos de linguagem e artifícios literários que ambas oferecem. Entretanto, reservamos este espaço de considerações finais, para concluirmos o jogo de relações entre as obras.

Se, de um lado, encontramos A América Latina, texto mais extenso e, ao mesmo tempo, mais rude e truncado, por outro, nos deparamos com Ariel, ensaio poético ligeiro, escrito em uma linguagem primorosa. Se em um, temos o realce do inconformismo rebelde contra os “males de origem”, em outro, observamos a serenidade de um mestre polido que nada tem contra a tradição europeia, muito pelo contrário a admira. Portanto, enquanto a escrita de Bomfim é constantemente violenta e provocativa, a de Rodó é sutil e sugestiva.

Em relação à perspectiva analítica, enquanto Bomfim vincula-se constantemente à sua formação médica, produzindo um estudo baseado em parasitologia, repleto de “receitas” e “remédios” para os males dos “pacientes” latino-americanos, Rodó se apoia grandemente em Shakespeare para compor a simbologia de seu ensaio, bem como em Johann Wolfgang von Goethe, Ernest Renan, Gustave Flaubert, Thomas Carlyle, Auguste Comte entre outros, para fazer sua fundamentação teórica. Em síntese, podemos concluir que, enquanto a eleição de Ariel e Caliban como representantes identitários vem de um intelectual com fortes tendências poéticas, a escolha de parasita e parasitado, demonstra a forte ligação de Bomfim com a bibliografia médica, dando ao seu texto aspectos de prosa naturalista.

Outro diferencial que consideramos digno de ser retomado nestas páginas finais é o fato de serem interpretações latino-americanas com ênfase em colonizações diferentes. Enquanto o foco de Manoel Bomfim está na relação vivida em território americano ao longo de três séculos de exploração ibérica, ou seja, na primeira colonização, Rodó, em Ariel, reflete sobre os riscos de uma nova colonização cultural, agora entre as Américas, em que os Estados Unidos são o novo líder. Assim, enquanto Bomfim narra a exploração física do território latino-americano, com saques e rapinas, Rodó coloca sua ênfase na exploração espiritual, diante da relação de submissão que se intensifica entre a América Latina e os EUA.

Após esse encadeamento de contrastes, voltamo-nos agora para as sintonias. Em primeiro lugar, os dois quebram a noção de pureza genérica uma vez que incorporam ao gênero ensaio, outros gêneros: teatro, poesia, narrativas ficcionais, entre outras. Isso é curioso, pois, naquele momento, apostar em um texto híbrido era afrontar o cientificismo em voga. Em um tempo em que as teses e tratados científicos se avolumavam nas prateleiras das bibliotecas, os autores optam pelo ensaio, esse “balbucio teórico”, para utilizarmos as palavras de Hugo Achugar.

A América Latina e Ariel convergem, ainda, pelo fato de serem ambas narrativas de extração histórica com inúmeras marcas de estilo ficcional em sua composição. Desse modo, enquanto em Ariel observa-se um intertexto explícito com a peça A

Tempestade, de William Shakespeare, em A América Latina, além dos ingredientes romanescos anteriormente demonstrados, há uma seleção de epígrafes de autores expoentes no cenário literário brasileiro como Olavo Bilac e Machado de Assis.

Observamos também que em ambos os ensaios, o ideal pedagógico é um tema central, pois, somente por meio de um povo melhor instruído a sociedade conseguirá encontrar “gentes de vontade educada” (BOMFIM, 2005, p.339). Em Ariel, o universo acadêmico está evidente, haja vista que o encontro entre Próspero e seus alunos se dá em uma sala de estudos repleta de livros. Assim, a ênfase na instrução é completa.

Finalmente, um fator extratextual, mas de significativo valor nesse exercício de aproximação entre os autores, prende-se ao fato de ambos escreverem seus ensaios em uma fase ainda jovem de suas vidas. Rodó quando publica Ariel contava apenas 29 anos, enquanto Manoel Bomfim, em 1905, ano de publicação de A América Latina, tinha 37 anos. Sendo assim, eram ainda jovens pensadores em suas nacionalidades, mas que se preocupavam com o futuro das igualmente jovens nações latino-americanas.

Rodó dedica seu ensaio “À juventude da América”. Além disso, em diversos momentos do discurso de Próspero, faz referência a esta fase da vida como “primavera do espírito humano” ou ainda “um sorriso da História”, e afirma: “Cabe ao espírito juvenil a iniciativa ousada, a genialidade inovadora” (RODÓ, 1991, p.25). Bomfim, além de confiar na força do jovem exercendo o trabalho ativo de instrução da massa ignorante, objetivando, desse modo, vencer o conservadorismo sufocante impregnado em solo latino-americano, também acredita na importância do futuro para essas novas nações: “a sociedade que pretende durar deve, não só organizar o presente, como preparar o futuro”. (BOMFIM, 2005, p.380)

O vigor da juventude presente em cada autor aqui estudado talvez explique a liberdade criativa com que procuram expor suas ideias, não temendo transitar na fronteira que separa o discurso histórico do ficcional. Igualmente, não se intimidam com o fato de abordarem um assunto extremamente abrangente e complexo, como o passado histórico-social do continente americano. Procuram, também, abandonar seus campos específicos de atuação – a medicina no caso de Bomfim, e o ensino e a crítica da literatura no caso de Rodó – para discutirem questões sociais americanas. Agem, dessa maneira, no pleno exercício do papel intelectual.

À guisa de conclusão, podemos afirmar que tanto A América Latina quanto

Ariel, são obras centrais na bibliografia dos autores, uma vez que os notabilizam no espaço discursivo latino-americano, bem como fora dele. Dessa forma, mais que contribuições interpretativas, podemos reconhecê-las como dois estudos clássicos que ajudaram a consolidar, no imaginário intelectual latino-americano, algumas ideias e valores que se transformaram em traços constitutivos desse bloco transnacional.

BIBLIOGRAFIA

Documentos relacionados