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Mas como é que faz pra sair da ilha? Pela ponte, pela ponte

A ponte não é de concreto, não é de ferro Não é de cimento

A ponte é até onde vai o meu pensamento A ponte não é para ir nem pra voltar A ponte é somente pra atravessar Caminhar sobre as águas desse momento A Ponte – Lenine

Na condição de assistente social do setor de Serviço Social do Hospital da Restauração foi possível observar, a partir do trabalho cotidiano de atendimento e encaminhamento de situações de violência ao Sistema de Garantia de Direitos – SGD, que parte das crianças e adolescentes com direitos ameaçados ou violados permaneciam no mesmo processo de violação, uma vez que retornavam à unidade de saúde para novos atendimentos.

Chamava a atenção o fato dessas crianças e adolescentes serem aquelas que se encontravam em condição agravada de violação de direitos, para as quais o SGD já havia aplicado medidas de proteção preconizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Isto nos levava a constantes questionamentos quanto à razão da recorrência desse fato, e a atribuir tal realidade, na maioria das vezes, à sistemática insuficiência de políticas públicas, como também a condições pessoais dos sujeitos que compõem o SGD.

A partir disto, buscou-se neste trabalho, conhecer as razões e dificuldades que contribuem para a não efetividade dos direitos de cidadania de crianças e adolescentes que sofrem reiteradas práticas de violência, identificando e analisando as contradições existentes no processo de proteção e garantia de direitos que dificultam/obstaculizam o restabelecimento dos direitos violados.

A apropriação de conteúdos teóricos acerca das relações que se estabelecem entre o Estado e a sociedade, do processo de construção histórico dos direitos de cidadania e da Política de Atendimento de Direitos de Crianças e Adolescentes, possibilitou a reconstrução do processo de atendimento de crianças e adolescentes no SGD e propiciou uma nova compreensão da problemática da negação de direitos, não mais restrita às explicações comumente proferidas no meio profissional, algumas vezes até de forma preconceituosa.

Mais que isto, foi possível identificar e reconstruir realidades antes não percebidas e que, em que pesem as dificuldades e limites concretos para a realização de direitos de cidadania para a infância e juventude, guardam potencialidades para a consolidação da nova cultura e sociabilidade dos direitos previstas pelo ECA. Potencialidades estas que podem ser observadas na introjeção dos conteúdos da Doutrina da Proteção Integral manifestada na fala dos sujeitos, considerada neste trabalho uma condição importante na busca da necessária aproximação entre teoria e prática, e, pelo fato de o SGD se configurar num espaço contraditório de disputa, no qual, no embate entre os dois paradigmas, há possibilidades de construções de novas práticas.

Verificou-se que há dificuldades concretas no que concerne à disponibilidade de estrutura física de apoio às atividades dos sujeitos, e que essas se referem à insuficiência de condição material e de programas de atendimento e retaguarda para a realização das ações. Estas dificuldades foram predominentente apontadas pelos conselheiros tutelares, que as consideram como um empecilho importante na sua atuação.

Tal dificuldade se relaciona com a baixa prioridade dispensada à questão da infância e adolescência pelos governos em seus orçamentos, em contraposição aos pressupostos do Estatuto, como também a ainda incipiente participação da sociedade na exigência de que essa prioridade se concretize.

A participação dos sujeitos no processo de garantia dos direitos violados se dá prioritariamente de maneira burocrática, com aplicação limitada das medidas protetivas previstas no ECA e sem a necessária ênfase no movimento político de mobilização dos diversos setores sociais alinhados com os pressupostos da proteção integral, na exigência da efetivação concreta desses direitos.

Há insuficiente compreensão de que as leis, por si só, não possuem a potencialidade de fazer valer os direitos negados, e isto contribui para duas realidades que muito dificultam o processo de garantia de direitos: a frágil compreensão da cidadania, que leva os sujeitos a transferirem para o governo a responsabilidade pelo “fornecimento” dos direitos estabelecidos em lei, desconsiderando os conflitos presentes entre a proclamação dos direitos e sua realização, que não se dá isenta de lutas; e, em decorrência desses direitos não se efetivarem automaticamente, o deslocamento das dificuldades reais de realização das ações protetivas para a insuficiência de estrutura física.

A não realização das medidas adotadas diante de situações de revitimização de crianças e adolescentes é, na maioria das vezes, atribuída à incapacidade das famílias em educar os filhos e, mesmo havendo a pontuação quanto ao processo de espoliação social a que estas estão submetidas no cotidiano, tal realidade não é introjetada pelos sujeitos em sua real dimensão.

Há dubiedades nos papéis a serem desempenhados pelos diversos sujeitos que compõem o sistema, que refletem o desconhecimento das atribuições do SGD em sua totalidade e que os leva, quando se deparam com situações em que não conseguem dar encaminhamentos efetivos, a sentirem-se desvalorizados e ineficazes.

A existência do aparato institucional atualmente em funcionamento, mesmo que ainda insuficientemente instalado para dar conta da realização dos direitos consubstanciados no Estatuto, consegue imprimir, através da fala dos sujeitos, uma direcionalidade no discurso de proteção, muito embora seja reconhecido que na realidade, ainda subsistam práticas condizentes com os pressupostos da Doutrina da Situação Irregular.

Há, portanto, a existência de um embate entre os dois paradigmas, para o qual os sujeitos necessitam de uma capacitação política que venha a contribuir com a promoção de uma mudança efetiva na sociedade acerca dos direitos do cidadão, como também viabilizá-los para que não haja retrocesso nas conquistas até o momento realizadas.

Foi importante para essas descobertas, a compreensão do problema da violência praticada contra crianças e adolescentes a partir de seu sólido enraizamento na estrutura da sociedade, expressão de fenômenos macro-sociais, a exemplo do acirramento das desigualdades sociais enquanto expressão da “questão social”, devendo ser suas manifestações, nesse âmbito, compreendidas como graves violações dos direitos de cidadania.

Outrossim, foi fundamental para o desvendamento da realidade do processo de negação dos direitos de cidadania, em especial de crianças e adolescentes revitimizados a constatação de que o pleno exercício da democracia como resultado da construção de um patamar em que os indivíduos atinjam o seu estatuto pleno de cidadãos, e onde o Estado assume o papel de garantir as regras do jogo, é algo ideal e não realizável na sociabilidade capitalista.

Todavia, o campo de intervenção do SGD enquanto espaço da sociedade civil é importante local de disputa pelos direitos de cidadania, e nele deve-se dar a afirmação dos pressupostos da Doutrina da Proteção Integral, fazendo-se necessário seu fortalecimento e

sobreposição aos pressupostos da Doutrina da Situação Irregular, que ainda sobrevive nas práticas cotidianas, para assim estender e consolidar direitos de crianças e adolescentes.