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A preservação do patrimônio cultural foi sempre tarefa complexa, em qualquer que seja a situação – cada país ou continente possui questões históricas, culturais e políticas que são suas, influenciam terminantemente na prática da preservação e precisam ser consideradas em todo momento, seja numa candidatura à obtenção de título de patrimônio mundial, seja na análise de um projeto arquitetônico. A prática da preservação e a teoria da restauração são, assim como os próprios projetos de arquitetura, cheios de ambiguidades e contradições. As questões locais, que variam conforme o contexto, exercem muito mais influência na proteção e conservação do patrimônio urbano e, consequentemente, na arquitetura, do que eventuais modelos e padrões predefinidos.

Frente ao mundo globalizado, em constante e rápida mutação, a atuação profissional no campo do patrimônio – seja do arquiteto criador, seja do gestor público responsável pela política de preservação – tornou-se ainda mais complexa e requer atualização constante, acúmulo de conhecimento e experiência, discernimento e bom senso. Essas prerrogativas não são, contudo, facilmente criadas ou adquiridas.

Para Gracia117, ao intervirem em núcleos históricos, muitos arquitetos não passam da intuição e, mesmo que esta possa colaborar com o processo criativo, não é suficiente para sustentar um projeto consistente. É preciso ir além da sensibilidade.

Nos últimos anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan vem direcionando montante significativo de recursos humanos e financeiros para a elaboração de normativas para cada um dos bens e conjuntos históricos protegidos em nível federal e suas áreas de entorno, com o intuito de orientar objetivamente o cidadão e também os profissionais com relação ao que é ou não permitido em termos de intervenção em bens de valor patrimonial.

Restam muitas dúvidas, porém, sobre qual será o resultado prático da nova produção arquitetônica inserida nesses contextos

179 protegidos caso estes instrumentos acabem por redundar em parâmetros numéricos e orientações normativas rígidas. Embora possam estar apoiadas em vasto estudo prévio com caracterização pormenorizada de cada conjunto edificado, as regras predefinidas muitas vezes não dão margem a interpretações diferenciadas, alinhadas ao contexto local e às situações circunstanciais específicas.

Neste quesito, vale trazer uma reflexão do arquiteto Marcelo Ferraz118:

Então quando você traz a iminência das regras, o problema é que as regras são europeias. E quando tudo tiver seu parâmetro, sua regra, então a arquitetura estará morta, vai ser um cadáver. E o problema é que tudo ainda é feito em função da experiência europeia.

A gente tem que descobrir o que é bom para a nossa realidade. Nós não temos Coliseu no Brasil, não adianta, não temos mesmo! A gente tem isso aí [olhando para a imagem das Missões], talvez seja o patrimônio mais valioso, ou dos mais valiosos. E a gente sabe onde pode tocar e onde não pode. Mas acho que a gente tem que olhar com outros olhos, e a questão do uso é chave.

Dessa forma, o esforço institucional que os órgãos de preservação realizam no sentido de traduzir seu posicionamento por meio do estabelecimento de regras claras, e que tem como pano de fundo uma questão legal, não poderá nunca desconhecer as especificidades locais e casuais, as oportunidades, o sentido daquilo que se ajusta e é mais apropriado para cada situação. A necessidade de normatizações, ou seja, de criação de regras a serem seguidas por arquitetos projetistas e analistas deve estar antecipada pela formulação de conceitos gerais e critérios de análise que vão muito além da mera aplicação de taxas de ocupação, afastamentos, gabaritos e todo o rol de dispositivos que caracterizam os instrumentos de gestão urbana no Brasil. As soluções para preservação e recuperação

118 Conversa com o arquiteto realizada durante a pesquisa, transcrita na íntegra nos

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das áreas urbanas de valor patrimonial não pode significar o engessamento conceitual ou um entrave jurídico para as áreas protegidas quando a realidade, sempre mais complexa, impuser a transcendência das normas. A preservação patrimonial ultrapassa a simples aplicação de regras urbanísticas casuais e, no campo da arquitetura, a análise crítica deve ser completa e profunda.

Aos preceitos tradicionalmente elencados pelas Cartas Patrimoniais (harmonia das alturas, cores, materiais e formas, elementos constitutivos das fachadas e dos telhados, relações dos volumes construídos e dos espaços, assim como suas proporções médias e a implantação dos edifícios, como dispõe a Carta de Nairóbi, por exemplo) e que têm o intuito de garantir da preservação da ambiência urbana devem somar-se a fatores específicos de cada contexto.

É importante ter consciência de que quaisquer que sejam as orientações normativas para novas inserções e intervenções em áreas protegidas – sejam elas de ordem eminentemente técnica ou apresentadas com roupagem jurídica – nunca serão capazes de garantir a qualidade dos projetos e a produção da boa arquitetura por si só. É preciso ir além e partir de uma base crítica capaz de tratar a questão por completo, considerando a complexidade dos contornos e dos contextos de cada lugar de forma clara e objetiva, sem arbitrariedades ou dogmatismos, abordando as subjetividades de forma coerente e aprofundada, sem escapismos ou abstrações que não possuam reflexo na realidade.

O caráter de cada obra de arquitetura deve ser considerado. Nem todo novo projeto pode ou deve querer chamar para si o protagonismo que, na maioria das vezes, deve ser tributado ao conjunto urbano, à ambiência que cada uma das unidades arquitetônicas contribui para formatar. Nem tudo deve ser contrastante ou destacado pela simples premissa de ser diferente, é necessário, acima de tudo, coerência conceitual. O projeto de uma unidade residencial ou comercial dentre tantas é distinto de uma igreja, de um centro cultural ou de uma escola, por exemplo. É indispensável encontrar, na gestão dos conjuntos urbanos com valor patrimonial, a justa medida entre diferença e repetição onde, segundo

181 Deleuze119, repetição não equivale a cópia ou generalidade, havendo nela uma ordem significativa de qualidade. Também a diferença torna-se repetição se for reproduzida à exaustão, sendo que um conceito não existe dissociado do outro.

É preciso que a formação dos arquitetos e técnicos que atuam com a preservação do patrimônio inclua noções aprofundadas de estética e crítica da arquitetura, da maneira que seja possível uma compreensão global sobre o projeto, buscando as soluções mais adequadas possíveis em cada contexto.

Como se viu, o conceito de patrimônio continua válido se aplicado de forma atualizada e em consonância com as questões específicas de cada realidade. Um projeto em Paris é muito distinto de um projeto em São Paulo, uma ação no Pelourinho não pode ser simplesmente transposta para Ouro Preto ou Laguna.

Os antigos dogmas do modernismo, dentre eles a noção de que as novas inserções da arquitetura precisam se distinguir do antigo através da necessária criação de contrastes, do uso de novos materiais e técnicas, precisam ser urgente e definitivamente revistos, sob pena de se continuar a produzir uma arquitetura pretenciosa e descontextualizada que não tem contribuído para a melhoria da ambiência das cidades e dialoga mal com o contexto em que se insere. No Brasil, ainda existe um grande potencial para a produção de experiências criativas, capazes de reverter o quadro de abandono e precariedade em que muitos conjuntos históricos se encontram – seja nas grandes ou nas pequenas cidades. Além disso, mesmo que se constituam numa porção muito ínfima da extensa malha urbana que se consolidou nos últimos cinquenta anos e, apesar da precariedade em que possam se encontrar muitas dessas áreas, os centros antigos e as cidades históricas permanecem possuidores de qualidades ambientais urbanas notáveis, a serem preservadas, resgatadas e novamente valorizadas. Para isso, qualquer intervenção, da substituição de uma porta até a construção de algo novo e grandioso, precisa ser balizada por uma alta dose de bom senso e comprometimento com o contexto que, como já foi dito, não é

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apenas o suporte físico, mas o contexto econômico, social, político e cultural em que estão imersas as cidades no Brasil.

Nesse sentido, o pensamento e a obra de arquitetos como Lucio Costa e Lina Bo Bardi permanecem absolutamente atuais e coadunados com a realidade brasileira.

Para ter como resultado um projeto bom e coerente, o arquiteto precisa saber dosar, com consciência e responsabilidade, a medida da sua atuação.

E eu acho que aí é que está a chave da história, quer dizer, uma chave muito difusa, muito complexa. Em que momento que você faz uma coisa contundente e em que momento não. Os arquitetos deveriam trabalhar o tempo todo com a noção de qual é a hora de aparecer mais, qual é a hora de desaparecer, hora de ser discreto. (FERRAZ, 2015)

Assim, diante da impossibilidade da criação de regras totais ou absolutas, a partir das quais se pudesse seguir cegamente com a certeza do bom resultado, resta aos arquitetos aprofundar o problema, considerar os contornos que cada situação toma, pensar e repensar os princípios.

Para Scruton (2010), uma das características particulares da arquitetura em relação às demais artes deriva da sua imbricada relação com o contexto em que está inserida. A construção de algo novo sempre estabelecerá algum tipo de relação com o preexistente, sendo que a estética da arquitetura carrega em si também um apelo ético e moral. Em última análise, o arquiteto é o profissional responsável pela feição e ambiência das cidades tanto quanto o médico é responsável pela cura ou morte de um paciente. No último caso, a responsabilidade estabelecida é particularmente individual, já o primeiro é um encargo coletivo, social e, em geral, mais perene. Constrói-se ou preserva-se na atualidade aquilo que fará parte da vida de gerações futuras, cujas transformações profundas são proferidas ao longo de algumas décadas.

No caso específico das novas arquiteturas inseridas em meio a um contexto urbano de valor patrimonial, a relação estabelecida entre

183 novo e o preexistente deve ter como prerrogativa a prevalência dos valores ambientais e estéticos presentes no conjunto protegido ou, em contextos urbanos transformados, as novas inserções podem contribuir para a paulatina requalificação urbana.

Neste caso, não são os princípios ou os anseios do novo que devem prevalecer a priori, mas sim uma relação de respeito e compreensão ampla sobre o contexto precedente, sob pena de gerar- se anacronismos que resultam, no mínimo, numa inadequação de formas – seja através da fabricação de simulacros, seja pela produção de arquiteturas pretenciosas e sem caráter – num extremo, a disseminação de meras construções, não de arquiteturas.

Por isso, a produção ou a análise de um novo projeto deveriam levar em consideração menos a existência de regras ou normas cabais genéricas, mas a conciliação entre uma teoria geral da arquitetura e do restauro e os verdadeiros traços distintivos da arquitetura, dos quais destaca-se sua natureza eminentemente plástica, técnica, pública, moral, funcional e interconectada com o contexto.

Como síntese, enfim, vale reforçar a ideia trazida por Solà Morales de que qualquer intervenção de arquitetura (seja na escala urbana ou do objeto) é uma maneira singularizada de interpretação de um determinado contexto, carregada de significados e simbolismos, estabelecendo um diálogo único com o local em que se insere (no tempo e no espaço). Para a boa arquitetura não há regras ou modelos a serem seguidos, mas a concordância de uma série de elementos complexos – subjetivos, mas não aleatórios – que caracterizam e singularizam a arquitetura das demais artes.

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