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CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS MISTAGOGIAS DA CARNE

CAPÍTULO 2: A MORAL SEXUAL NA PASSAGEM DA ANTIGUIDADE PARA O PERÍODO CRISTÃO E SUAS RELAÇÕES COM A

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: AS MISTAGOGIAS DA CARNE

Após o estudo das relações entre a evolução da confissão cristã e a constituição da sexualidade a partir das práticas disciplinares de verbalização do sujeito de desejo em Michel Foucault, percebe-se o esforço do filósofo francês em revisitar a história da subjetividade ocidental à luz dos mecanismos de incitação discursiva e as consequências disso na constituição da verdade. Nesse sentido, a carne cristã, oriunda desse cruzamento de olhares e práticas, emerge do conflito estabelecido entre o indivíduo e os próprios desejos, no seio da dinâmica institucional da Igreja. A carne precisou ser examinada, confessada, dita e produzida no movimento das disciplinas de subjetivação, na qual cada fiel se colocou sob o olhar de uma autoridade exterior.

O desejo, antes de ser considerado como a causa da insubmissão da carne, é entendido como consequência do pecado original. Na desobediência do próprio corpo, dos próprios desejos, o eco da queda adâmica e suas penas impostas na carne de cada ser humano. Esse desejo encontra-se, desde então, incrustado, irremediavelmente no interior de cada pecador, como lugar de suspeita, de questionamento, de insurreição da própria vontade. A culpa, muito mais do que o ato sexual em si, desloca-se, de acordo com Foucault, para o interior dos movimentos da alma, onde se encontra submersa no jogo do verdadeiro e do falso, colocando em risco a própria verdade daquilo que se é.

Para tanto, como foi apresentado no decorrer dessa pesquisa, seguindo os estudos foucaultianos, o cristianismo se esforçou, em primeiro lugar, em constituir esse sujeito de desejo, marcado pela inelutável insubmissão decorrente do pecado de Adão. Somente assim, poderia, no decorrer da dinâmica do pastorado, estabelecer uma forma de poder que pudesse atravessar os corpos e as almas no

conjunto das elaborações discursivas. A carne se fez verbo, para o que verbo pudesse indicar o sujeito em sua condição decaída, passível de um exame e de uma prática disciplinar.

Nesse sentido, não se pode separar, na Igreja cristã, o pecador do sujeito de desejo no que diz respeito à sexualidade. Voltando o olhar para dentro de si, cada fiel passou a ser examinado em sua vontade mais íntima, no território da dúvida e da inquietação, antes mesmo que os sonhos e as ilusões dos desejos sexuais alcançassem o corpo e seus movimentos. Esse olhar estabelecido sobre cada fiel fez com que, no interior das instituições monásticas primeiramente, e depois em toda doutrina moral sexual, cada indivíduo se pusesse numa relação de passividade em relação ao próprio sexo. A moral se tornou refém de um território abscôndito, atravessado pelos mecanismos de produção discursiva, que encurralaram o desejo na esfera do sujeito e o submeteram à lógica do poder.

Com isso, reafirmamos aqui, a crítica de Foucault à hipótese repressiva, defendida pela modernidade, de que a sexualidade teria sido oriunda daquilo que a reprimiu e que a calou. Tal afirmação corrobora a hipótese de que as práticas produzem os sujeitos e que, tais práticas, não se fazem apenas a partir do conjunto de leis, de teorias, de doutrinas ou proibições. Elas percorrem os procedimentos de incitação discursiva. No caso do cristianismo, atravessa os modos como o sujeito foi identificado com o seu próprio desejo e como tal identificação é inextricavelmente ligada ao sexo e à sua presença constante no interior de cada fiel. Mais do que uma análise da culpa, um olhar sobre o desejo e suas relações com a verdade de si, no seio da instituição.

No que diz respeito à moral cristã, apontamos com essa pesquisa que o processo de constituição da verdade sobre a sexualidade, seja em suas finalidades, seja em suas relações com a sociedade, não se diferencia de modo geral do mundo

pagão, herdado da cultura greco-romana. Percebemos que também no paganismo determinadas proibições já existiam e que, quando infringidas, poderiam acarretar um juízo moral do indivíduo, tal como no cristianismo. Como apresentamos, o sexo praticado entre os casais já era, no mundo antigo, voltado para a procriação e para a harmonia dos noivos. O cristianismo, posteriormente, também se servirá dessa definição para apresentar o sexo em suas finalidades procriativa e unitiva. Todavia, o que tentamos expor, foi a mudança de olhar sobre o sexo estabelecida pelo cristianismo. De uma perspectiva ativa para uma perspectiva passiva. De um juízo moral estabelecido sobre as práticas e a repercussão social das mesmas, passa-se à dimensão de passividade que o sexo infringe em cada ser humano. O indivíduo, no cristianismo, passou a se ver sob a lógica do desejo, sob o olhar da dúvida instaurada pelo pecado original e sua desobediência e que encontra na sexualidade sua força mais evidente.

Para que esse deslocamento do olhar ocorresse, a pesquisa foucaultiana apontou com clareza a ligação existente entre a constituição do sujeito de desejo e os mecanismos de confissão, oriundos das instituições monásticas e consolidados na evolução do sacramento da penitência. Nesse sentido, sublinhamos nos estudos de Foucault, sobretudo nos da década de 80, o esforço em ressaltar a mudança operada pelo cristianismo na doutrina moral sobre a sexualidade. Vimos como o cristianismo lançou o foco da moral para a verdade dos sujeitos, tirando das relações e dos prazeres, tal como podia ser visto na moral grega e romana. A moral se internalizou no ambiente das práticas discursivas, fazendo com que a carne se tornasse verbo para poder ser objeto de análise e de poder.

A moral sexual cristã, quando revisitada em suas origens, encontra nos primeiros quatro séculos de nossa era uma fonte inesgotável de elementos para a compreensão de sua relação com a sociedade e com o poder. Ao mesmo tempo que não se pode falar de uma originalidade da moral cristã, no que diz respeito a temas como a casamento, castidade, moderação e família, percebe-se, nesse período, a ligação indissociável entre a moral e os mecanismos de produção discursiva no interior das instituições. O desejo sexual é identificado como o grande lugar do entrelaçamento da carne e do espírito, o aguilhão da carne, 271que justificará o exercício constante de um exame sobre si, sobre a própria consciência, no intuito de confessar os próprios pecados, mesmo os mais escondidos.

Todavia, há que se destacar no interior da Igreja cristã dos primeiros séculos a presença constante de uma outra forma de constituição doutrinal, que não se efetua através dos mecanismos de confissão. Trata-se do caminho mistagógico, pelo qual as primeiras comunidades entenderam o processo de conversão e de adesão à fé. Um caminho que não se dava pela explicitação da palavra, mas pelo encontro com as práticas e modo de vida dos cristãos. Tal percurso atravessava a liturgia, o batismo e, principalmente, o testemunho das primeiras comunidades. Supostamente, anterior a qualquer obrigação disciplinar de exame e verbalização de si, propunha um caminho a ser percorrido pelo indivíuo que quisesse se tornar cristão. Através dele, o encontro com o mistério deveria se fazer sem a coerção institucional, sem a necessidade da submissão a determinados procedimentos ou a mecanismos de verbalização nos quais a verdade de si fosse exigida.

Imaginamos que os rumos da moral sexual no interior do cristianismo devam resgatar esse percurso mistagógico. Para além da instância do sujeito de desejo, cristalizado pelas práticas disciplinares e solidificado pela doutrina, resgatar a carne

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em seu sentido cristão anterior ao das práticas disciplinares instauradas. Numa realidade onde o próprio sujeito moderno, bem como as instituições derivadas dele passam por uma crise que alcança as esferas políticas, sociais e morais, tal resgate é fundamental. A possibilidade da carne antes do verbo, antes da instituição dos mecanismos de confissão e exame de si, no momento em que o cristianismo se destacava não pela força institucional, mas pela capacidade de contradição, presente na própria mensagem de um deus feito carne.

A moral sexual cristã percorreu a lógica de identificação dos desejos, de minunciosidade sobre os pensamentos, de busca incessante pelos movimentos interiores, como presença sequiosa do mal no coração humano. Além disso, tal procura se fez indissociável da necessidade de exposição desse desejo, no desenvolver da confissão. Todavia, o que propomos como um esforço de ressignificação da moral sexual é uma abordagem da carne, não como território da palavra, depósito das intenções, ou lugar da produção discursiva da verdade dos indivíduos. Nesse sentido, pensamos que essa pesquisa corrobora a desconstrução de um sujeito sexual pautado identificado por seu desejo, produzido muito mais pela disciplina de submissão instituída pelo cristianismo, do que propriamente por si mesmo. Mais do que ver a carne no âmbito das incitações discursivas, permitir com que a carne, em sua plasticidade, e beleza, seja revisitada na sua imensa capacidade de surpreender.

O sexo, nesse sentido, mais do que resultado de um processo subjetivante de constituição das verdades sobre os indivíduos, emerge com o poder de se tornar o lugar de uma recusa fundamental. Uma recusa na forma de emudecimento diante do próprio desejo, escapante das definições morais e objetivantes, nas quais toda singularidade se cala. Uma moral sexual da carne como lugar de encontro com o

mistério e suas possibilidades, para além de qualquer conceito. Enfim, a carne como território inabitável das surpresas infinitas.