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A proposta de repensar o percurso trilhado pela política exterior do segundo governo Vargas para os Estados Unidos, desde sua formulação e persecução até os resultados alcançados, teve a pretensão de compreendê-la enquanto um processo único. O segundo governo Vargas defendia as relações exteriores, sobretudo, enquanto um instrumento de consecução do seu projeto de desenvolvimento. Daí, portanto, sua política externa de privilegiar as demandas de caráter econômico-financeiro e submetê-la a sorte de todas as inflexões da dinâmica política doméstica e internacional. Vale dizer, a política exterior varguista não teve um sentido em si mesma, mas enquanto ferramenta deveria adequar-se às dificuldades do trabalho. Entendê-la como um processo significa, portanto, buscar suas finalidades, os objetivos por que atuava e em vista dos quais estabelecia sua ação tática, bem como suas causalidades, as forças que a impulsionavam, a pressionavam e que pretendiam redefini-la.

A estratégia de barganha, conforme denominamos a política externa varguista para os Estados Unidos, repousava fundamentalmente sobre uma contradição de princípios, isto é, pretendia ceder para conquistar e vice-versa – aspecto fundamental que a torna difícil de compreender como uma totalidade. Um desdobramento direto desta característica é a forma ou a tática utilizada na perseguição de seus propósitos, ora assinalando com uma maior aproximação ora propugnando pelo afastamento, dependendo das condições e possibilidades que se apresentavam a curto e médio prazo. O pragmatismo tornava-se um recurso inerente a essa postura.

Não obstante, o segundo governo Vargas tentou constantemente articular os termos de uma barganha, de uma estratégia de política exterior, nem sempre possíveis, e que se apresentavam dissociados aos olhos dos coevos, fomentando as paixões mais antagônicas. Sua coerência, entretanto, deriva do fato de se ter apresentado como uma estratégia realista (possível e factível) a ser explorada até as últimas conseqüências, a serviço de um projeto econômico de desenvolvimento de grande envergadura.

Enquanto estratégia fortuita, ou seja, um elemento técnico da atuação diplomática, presente em qualquer negociação, a barganha aparece em qualquer governo. O que a distingue

para o segundo período Vagas é tê-la adotado como uma política de Estado, em um momento transitório na forma e conteúdo do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos.

Em traços gerais, a estratégia de barganha significou uma luta contra os resquícios do mito das “relações especiais” inaugurado meio século antes, mas abandonado com a guerra fria. Em outras palavras, representou a adoção de uma nova postura, distinta do alinhamento tradicional que repousava em uma crença no pan-americanismo, para assumir um alinhamento propositivo e crítico, porque negociado.

A polarização ideológica nacionalismo versus entreguismo, presente no tratamento das relações internacional do Brasil daquele período pela sociedade, pode ser entendido como expressão aparente da contradição entre um paradigma falido e um distinto padrão de relacionamento pautado pelo desenvolvimento capitalista industrial. Contradição esta que se transmudava na atuação de determinados policy-makers do Estado, como por exemplo, o ministro João Neves da Fontoura, partidário de uma barganha mais idealista, retórica, no sentido de conscientizar os Estados Unidos da importância estratégica do Brasil.

E de fato, a tática pragmática da estratégia de barganha favorecia também a sustentação de uma perspectiva mais retórica das negociações com os Estados Unidos. Até 1952 a barganha privilegiou a perspectiva da cooperação e da reciprocidade, em vista da possibilidade de uma articulação exitosa entre os termos político-militares e econômico-financeiros que as conversações bilaterais indicavam.

A partir de 1953, contudo, quando a mudança de governo em Washington tornou explícita a fragilidade daquela perspectiva em que se pautava a estratégia de barganha, devido à perda do monopólio brasileiro sobre as fontes de recursos minerais e o fim do conflito coreano, Vargas passaria a investir – paralelamente à estratégia anterior – em uma estratégia de negociação baseada em uma forte pressão ideológica, calcada em arroubos nacionalistas que não buscavam repelir o capital estrangeiro, mas criar brechas de barganha para atraí-lo.

Essa ênfase na dimensão ideológica da barganha teria sido uma estratégia bem sucedida não fosse a frágil base de apoio político interno à postura de Vargas, condição aliás da qual a diplomacia norte-americana tinha plena consciência.

A possibilidade de sucesso do nacionalismo “possível” de Vargas como elemento de barganha talvez tivesse sido maior que a ênfase de reciprocidade da estratégia anterior na persecução dos objetivos desenvolvimentistas. Embora nos EUA o governo republicano primasse

pela racionalização dos gastos orçamentários, havia por outro lado uma declarada obsessão em conter o avanço do comunismo nas regiões periféricas. O nacionalismo, ainda que bem distinto do comunismo em sua proposta política, era potencialmente subversivo para os planos liberalizantes norte-americanos. Daí, portanto, seu poder estratégico de ampliar e potencializar as condições da barganha.

Para o êxito do nacionalismo como fator de barganha, todavia, necessitaria Vargas de uma correlação de forças que sustentasse tal estratégia, que ao final mostrou-se contraproducente e vacilante em recompor a base populista de apoio, tanto pelo lado dos trabalhadores como (e sobretudo) da burguesia industrial.

Nesse sentido, o fracasso da barganha externa não residiu somente e de forma determinante no fato de depender de decisões que se processavam externamente, mas, sobretudo, em não poder contar com uma base de apoio que desce sustentação a sua estratégia de negociação.

Por isso não podemos pensar na ação externa do governo Vargas somente por meio dos termos tradicionais da estratégia diplomática, mas também incluindo a importância do nacionalismo como um recurso de pressão política que, apesar de presente no arranjo populista, era por isso mesmo muito frágil. 416

Diante do que foi visto, não é possível sustentar que o governo Vargas tenha priorizado as negociações econômicas em detrimento das questões políticas, sugerindo que o alinhamento político e ideológico era um eixo inflexível e inegociável da sua política externa. E por isso, em outras palavras, teria sustentado uma política externa ambígua, ora buscando a aproximação ora o afastamento em relação aos EUA, com medidas contingenciais cujo objetivo era alcançar a máxima conciliação política interna. Ao contrário, a aproximação e o distanciamento eram partes de uma estratégia coerente, cujos propósitos eram arquitetados em médio prazo, mas que nem sempre obteve o resultado pretendido.

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Carlos E. Martins. Brasil – Estados Unidos: dos 60 aos 70. Caderno Cebrap, n. 9, 1975. Segundo o autor, o caráter moderado “em grau e alcance” do nacionalismo varguista deve-se ao fato de que o “pólo antinacional” era representado por uma força social que permanecia interna, embora se distinguisse pelos seus interesses externos. Essa internalização da disputa política dava-se, portanto, em torno da apropriação e realocação dos recursos constantes das receitas de exportação, pelos quais se defrontavam a coalisão dominante, sob liderança do Estado, e os interesses nacionais vinculados com o exterior.