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Longos caminhos foram trilhados até aqui, ao que chamam de considerações finais. Contudo, o encerramento de um texto não se dá sem batalha, tendo em vista que

112 o mesmo nos atravessa de maneira a permanecer naquele que o lê, sem reinventando e sendo reinventado.

As identificações perpassam as vidas dos sujeitos, ao serem reivindicadas ou ao designar aqueles que as abraçam. Neste trabalho a proposição foi de pensar as construções das identidades transgêneras a partir das tirinhas produzidas por Laerte Coutinho. Diante disso, indagações foram levantadas. Quem é Laerte? Qual a relevância de suas criações artísticas para a História? Do que falamos, quando citamos a transgeneridade? Que identidades são essas e de que maneira elas se constroem? Estas questões me permitiram trilhar os caminhos de formação das identificações transgêneras a partir tanto dos traços biográficos da cartunista em questão, quanto das personagens que a mesma criou ao redor de tais temáticas.

O trabalho com sujeitos transgêneros tem grande importância, dado que esses existiram ao longo da história, contudo ainda não possuem registros a respeito na produção científica da História. Desta forma, a realização de tal estudo tem grande peso, tanto para a criação do conhecimento da transgeneridade como uma outra possibilidade de apresentação em sociedade, quanto em seu valor social, já que é também uma maneira de dar visibilidade àqueles que permanecem ignorados científica e socialmente. É imprescindível pontuar que esta dissertação não pretende ser quem dá visibilidade, pois a compreensão é de que tais figuras humanas se fazem vistas, mesmo que através do incômodo que as suas existências causam. São perceptíveis, do mesmo modo, as violências praticadas em tornos das pessoas transgêneras – na forma como são tratadas pelas mídias, através da transfobia, ao serem ignoradas por aqueles que „fazem‟ a História.

Outro ponto importante é o uso das tirinhas como fonte – ainda pouco utilizada pelos historiadores – de pesquisa, já que as mesmas são produzidas com os elementos do cotidiano, tratando as temáticas que aborda livremente, pela sua constituição a partir da combinação de imagens com a presença ainda de texto. A sua forma a proporciona burlar restrições que poderiam ser feitas em suas abordagens, tornando-as imprescindíveis recursos para a análise histórica dos sujeitos e suas sociedades.

A partir das tirinhas, centradas nas personagens de Hugo, Muriel e as demais que os circundam, se pensou as tranformações ocorridas nas vidas dos sujeitos transgêneros.

113 Fez-se a percepção das identificações que Laerte Coutinho permite transparecer, tanto em sua fala como através das tirinhas que produz, analisando suas ideias acerca das questões de gênero, ao identificar que a ela possui proximidade com leituras teóricas – chegou a produzir uma tira se utilizando dos escritos da autora Judith Butler. Ainda se pensou as suas relações e mudanças no trabalho, que foi afetado por esses processos de transgeneridade que acarretaram na produção de uma nova maneira de ver o mundo para a cartunista.

A trangeneridade é construída através das identificações que se refletem também a partir do vestuário. Suas formas são elaboradas em meio à cultura do binário, embasada nos pilares da heteronormatividade, produzida e vivenciada ao longo dos séculos XX e XXI. Aqui se tem o entendimento que a própria construção de tais identidades tem historicidade, tendo em vista que os sujeitos transgêneros atravessam transformações em suas vidas assim como em seus corpos. As mudanças ocorridas em seus cotidianos, dentro de si, corporalmente e subjetivamente, e para com a sociedade da qual são e se inserem.

O processo de construção identitário foi construído, aqui, através do armário. Cada peça que nele está e dele sai, colabora para a construção de diversas identidades, assim como a desconstrução de muitas outras, a partir do momento em que, no caso dos sujeitos transgêneros, subvertem a norma heteronormativa e desmontam os padrões discursivos estabelecidos na sociedade ao viver e se apresentar através da estética considerada como do sexo oposto.

Hugo, o declaradamente superego da autora, também atravessa as mutações e reformulações das suas subjetividades, se descobrindo, através das diversas transformações que sofre e provoca, ao se utilizar também das vestimentas consideradas somente para o uso das mulheres. Ele, assim como outros sujeitos transgêneros, é parte de revoluções cotidianas e particulares, que não mudaram a sociedade como um todo, mas que provocam, se não a reflexão, ao menos o incômodo da presença, o que talvez culmine na alteração de posicionamentos dos seus Outros. Muriel é como aquele desenho animado em que o autor, ainda no correr do episódio, pega a borracha e apaga o cenário ou até mesmo o personagem, para adiante transformar o rumo dos acontecimentos. Ela se reinventa, ou o é por outrem reinventada, a cada novo quadro.

114 Tira XX

As identificações são diversas, coexistem entre elas e constroem fronteiras que podem ou não se cruzar. Fazendo referência ao poema de Mário Quintana 40, Laerte direciona seu olhar para as representações construídas por si e em torno de si. No primeiro quadro, se representa a partir dos referenciais de estéticas do padrão de beleza vigente no século XXI – corpo esbelto, seios grandes, maquiagem e cabelos lisos. Em seguida, formula a visão que os Outros têm de si, como sujeito abjeto de formas exageradas e em desarmonia, se configurando próximo a ideia de monstruosidade, anormalidade. O terceiro quadro demonstra uma visão que tenta se aproximar da realidade que a cartunista vive. E por último, porém não menos importante, Laerte Coutinho se representa na frase “eles passarão, eu passarinho”. Como uma ave, na leveza de um voo, em sua liberdade de se construir e transgredir, além de articular suas próprias revoluções pessoais.

40

Poeminha do contra, Mário Quintana: Todos que aí estão atravancando meu caminho/ eles passarão/ eu passarinho.

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