• Nenhum resultado encontrado

Analisar a formação de uma instituição nunca é um trabalho fácil. O que dizer então de compreender um grupo social como a ekklesia profundamente complexo. É deveras difícil reconstruir o que foi a vida eclesiástica dos primeiros cristãos, pois poucas evidências sobreviveram ao tempo. No entanto, as fontes escolhidas são importantes pistas na reconstrução desta História.

Na presente dissertação, buscou-se demonstrar a formação do episcopado monárquico no século II mediante o testemunho de três autores cristãos: Inácio de Antioquia, Ireneu de Lião e Eusébio de Cesareia. A análise dessas fontes, acrescida de uma reflexão historiográfica, mostrou que o episcopado monárquico se estabeleceu junto à criação da

ekklesia como instituição.

A formação dos ofícios na ekklesia não se constitui com a fundação de um ofício normativo derivado de Jesus, pois na época reinava uma ―caótica liberdade do Espírito‖, e as pessoas eram dotadas por este Espírito de forma individual. A única autoridade carismática verdadeiramente transcendente havia sido Jesus Cristo. Não havia apóstolos carismáticos ou cargos no sentido lato. Isso porque a base da autoridade destes era Cristo ressuscitado, o próprio testemunho dele. Não havia cargos pré-estabelecidos, pois os apóstolos foram indicados individualmente por Jesus, recebendo a autoridade por ele. Assim, o carisma era transmitido, porém não na sua completude, nem centrado em uma única pessoa, mas na forma de múltiplos dons a diversas pessoas (CAMPENHAUSEN, 1969).

É inegável, ainda, que a doutrina paulina foi determinante para o desenvolvimento ministerial posterior da ekklesia. No entanto, vale destacar que, no tempo de Paulo, as prerrogativas funcionais na ekklesia eram encaradas como dons e difundidas para todos na congregação. O cargo era somente mais uma atribuição espiritual.

Entendendo-se a instituição como uma estrutura ou mecanismo de ordem social e de cooperação que rege o comportamento de um conjunto de indivíduos dentro de uma dada comunidade, a ekklesia estava se formando como um grupo social, com determinados ritos; entretanto, ela só conseguiria ascender como instituição, se houvesse uma identidade compartilhada, uma liderança potencial e uma organização no grupo, a fim de se adquirir a capacidade de atuar coletivamente. E, sob tal aspecto, as ekklesiae gentílicas parecem ter sido incapazes de se manterem unidas. Por isso, houve uma repressão à liberdade dos dons espirituais e um aumento da importância dos cargos e ofícios, em uma absorção da autoridade espiritual pelo cargo oficial, o ―carisma do cargo‖. Quanto a isso, Roma saiu na frente, ao travar uma batalha pela unidade e contra a permanência de costumes judaicos nas comunidades, bem como resistindo a toda e qualquer ―heresia‖ concorrente, em especial a gnóstica e a montanista.

A documentação apresenta um cristianismo em transição de um modus vivendi judaico

Foi por conta desse momento de cisão institucional e teológica, empregando duas das terminologias utilizadas por Wolfram Kinzig (1991), que houve incompatibilidades e contradições dentro das comunidades.128 Inácio traz um cristianismo em ruptura com o judaísmo, ou, mais especificamente, como defende Zetterholm, do cristianismo gentílico com o cristianismo judaizante. Segundo Zetterholm (2005), se a nova religião, durante o reinado de Trajano, teve chance de ser legalizada, tal chance diminuiria caso esta tivesse ligação com o judaísmo. Isso porque naquela época tudo o que se relacionava ao judaísmo era associado necessariamente aos judeus envolvidos na Guerra dos Judeus de 66-70 e nas revoltas ocorridas no Egito, em Cirene e talvez até mesmo na Palestina em 115-117. Portanto, Trajano se mostrava restritivo, pois desconfiava de que o movimento tivesse cunho político. Inácio de Antioquia, martirizado no reinado desse mesmo imperador, não só apresentou muito bem a situação como teve muitos motivos para repudiar as influências do judaísmo nas comunidades cristãs. Destarte, para que a ekklesia se tornasse mais coesa, foi necessário criar uma organização forte, longe de qualquer identificação com o judaísmo. Tal instituição foi constituída em torno de um ―altar sagrado‖ ocupado pelo presidente da eucaristia, o epíscopo, figura com poder agregador e carisma profético. Estar submisso ao bispo era condição básica para participar da ekklesia, seus ritos e práticas.

128

A pesquisa acerca das relações entre o judaísmo e o cristianismo no Império Romano tem produzido muitas

mudanças nas investigações sobre o assunto, principalmente pela superação de um modelo dito ―tradicional‖.

Em meio a uma série de propostas que têm sido conjecturadas desde o século XIX por Adolf Von Harnack, seguido por Marcel Simon, Boyarin e Reed & Becker no século XX, nos debates sobre o esgotamento progressivo do judaísmo, Wolfram Kinzing, em seu artigo intitulado Co-operation between Jews and Christians

in Fourth Century (1991), traz uma análise alternativa e interessante. Ele propõe a existência de quatro níveis de

separação entre o judaísmo e o cristianismo, sendo que o primeiro deles teria sido o doutrinal. Este estaria centrado nas profissões de fé formuladas pelos pensadores da Igreja, particularmente no domínio da cristologia. Em termos doutrinais, a cisão entre ambos teria ocorrido muito cedo, talvez logo após a morte de Jesus. O segundo nível, o teológico, por sua vez, estava relacionado à produção de uma teologia cristã específica. Nesse ponto, os cristãos, durante muito tempo, haviam sido tributários do judaísmo. Por esse motivo, muitos escritos teológicos dos primeiros séculos são difíceis de classificar como judeus ou cristãos. O terceiro grau de separação foi o institucional. Tal irrompe quando um grupo oficial segrega outro por meio de uma declaração de autoridade. Isso redundou na criação de duas associações distintas, no caso, a igreja e a sinagoga, cuja ruptura também teria sido precoce. O último estágio foi o da piedade popular. Este se instaura quando grupos concorrentes criam suas próprias tradições religiosas, observadas exclusivamente por eles. É nesse estágio que Kinzing situa a permanência de contatos mais estreitos entre cristãos e judeus. Para tanto, ele evoca diversos exemplos como os nazorreus, os ebionitas e os judaizantes. Eles revelam que havia grupos ditos cristãos no limiar entre cristianismo e judaísmo, desafiando a hierarquia eclesiástica (SILVA, 2008).

Por outro lado, o cristianismo estava digladiando com aqueles que atentavam contra os elementos doutrinais fixos estabelecidos pela ―ortodoxia‖ já razoavelmente forjada.E, neste debate, encontra-se, mais uma vez, Inácio de Antioquia, em sua luta contra os docetistas, e Ireneu de Lião. No caso do segundo, na sua obra que combateu a ―heresia‖ gnóstica, o bispo estabeleceu a sucessão apostólica como doutrina básica para a defesa da ―ortodoxia‖. Nela, o

múnus apostólico seria incumbido de guardar o querigma, na forma de tradição canônica, para

os tempos posteriores. Além disso, a sucessão seria operacionalizada pela imposição de mãos

– praxe rabínica, com caráter de legítima investidura, mas que, no cristianismo, como se

observa nas cartas pastorais (1Tm 4:14; 2Tm 2:1), e, em Ireneu, aparece antes como um meio pelo qual o ―carisma da verdade‖ seria transmitido. Sob esse aspecto, os herdeiros dos apóstolos seriam os presbíteros-bispos, testemunhas da verdade e detentores da verdadeira tradição, encarregados de gerenciar as congregações. Ora, segundo Ireneu, tais congregações comungavam de uma koinonia tal, que se estabeleciam harmonicamente reunidas por um espírito de catolicidade, legando ao presbítero-bispo o papel social de provedor da unidade.

Inácio de Antioquia e Ireneu de Lião, apesar de serem fontes que apresentam experiências dissociadas, trazem em seu bojo nuances e particularidades que as tornaram complementares na medida em que postulam sobre a formação do poder episcopal e ainda tratam do assunto regionalmente. Neste sentido, os documentos mostram que a maior parte dos agregados cristãos no século II, mesmo que regionalmente, buscaram estabelecer estruturas e mecanismos para a ordem social por meio da mútua cooperação de modo a promover sua própria sustentabilidade, bem como a manutenção dos fieis nas congregações. Em contrapartida, observa-se uma acentuada competitividade entre alguns desses grupos cristãos.

Deve-se considerar, ainda, o documento escrito por Eusébio de Cesareia que traz uma das maiores controvérsias do paleocristianismo: a tentativa de dissociar o calendário

eclesiástico do calendário judaico (ZERUBAVEL, 1982). Todo o empreendimento se deu, primeiramente, por ser necessário que o cristianismo criasse uma identidade própria desvinculada do judaísmo, e, ainda, por ser sabido que a preservação de uma tradição uniforme era o único modo pelo qual a associação entre as comunidades seria possível.

A questão quartodecimana foi fundamental para a formação da instituição cristã, pois, ao se estipular um calendário único para a comemoração da Páscoa, na qual se tem a mais importante celebração eucarística do ano, acabou-se por solidificar a solidariedade de um grupo. O calendário funciona como uma memória social, pois nos dias de festa os sentimentos de grupo se expressam mais intensamente (ZERUBAVEL, 1982). As ideias (tradição) e a pessoa para a qual apontam (Jesus Cristo) formavam um amálgama entre as comunidades (BOCK, 2006). Todavia, os costumes adotados em cada uma delas, muitos não explicitados em uma ―doutrina única‖, geravam diversas contendas como a questão quartodecimana. A controvérsia entre Roma e Ásia Menor foi um reflexo simbólico dos contrastes sociais, étnicos e religiosos, expressos pela necessidade de um grupo de se dissociar de outros, além da necessidade de se instituir um ajuntamento coeso sob a liderança de uma única voz. Desse modo, o calendário funciona como uma trama no tecido social pelo qual se preserva a estrutura entre os homens e as coisas, ao que se chama de instituição. Para o bispo de Roma, a

ekklesia só sobreviveria se esta se organizasse como uma instituição forte, com uma

identidade própria e única – não matizada em várias correntes ditas ―ortodoxas‖ –, sendo constituída em torno de uma figura com poder agregador, no caso, o bispo. 129

Vale destacar que os bispos se utilizaram de um profícuo meio de comunicação para operacionalizar seus empreendimentos e divulgar suas doutrinas: as cartas. Hábito comum no mundo greco-romano e herdado dos próprios apóstolos, a prática de se enviar correspondência

129

Como foi explicitado no Capítulo 2, havia três correntes iniciais dentro do cristianismo no século I que vão se perpetuar no século II dentro da ekklesia considerada ―ortodoxa‖: o cristianismo judaico, o cristianismo gentílico e o cristianismo joanino.

foi empreendida por todos os personagens do século II analisados nesta pesquisa (Inácio, Ireneu, Policarpo, Polícrates, Vitor). As correspondências, ao abarcarem vastas áreas geográficas, funcionam como um eficaz instrumento de caráter político para o exercício do poder e da autoridade dentro das congregações reforçando a posição de liderança daqueles que as enviam.

Em uma busca pela unidade na diversidade, constata-se que alcançar por um Bispo, um

Deus, em uma ekklesia, só seria possível, aos olhos de Inácio de Antioquia e de Ireneu de

Lião, com o episcopado monárquico, com os bispos na condição de detentores da verdadeira tradição e do carisma, exercendo a função de agentes diretos de Deus para a ordem do cotidiano, do culto na ekklesia.

Ao final do século II, cada comunidade tinha seu próprio bispo. Entretanto, para alguns, a ekklesia devia aspirar à catolicidade ―universal‖ na busca do poder de um único bispo (FOX, 1986). No Oriente, Polícrates, bispo de Éfeso, defende a primazia episcopal, mas legitimada pela tradição apóstolica local, na valorização da comunidade como entidade étnica-cultural regional. No Ocidente, Vitor, bispo de Roma, entretanto, não só constata a importância do episcopado monárquico na demarcação de uma fronteira social a ser estabelecida, como, ao vivenciar um período de profunda instabilidade e diversidade, além de liderar a comunidade da Capital do Império – que atraía fieis de todos os lados –, empregou seus esforços em direção à concretização desse anseio, pelo alargamento supra-regional dos espaços de poder, valendo-se de uma prerrogativa política ao se portar como o chefe máximo da ekklesia ―católica‖ na forma de um epíscopo monarca.

Referências