• Nenhum resultado encontrado

Para Fairbairn (1940), as inevitáveis relações traumáticas com a mãe estão na origem da constituição do terrível universo interno, marcado por relações imutáveis entre objetos infinitamente maus ou excitantes, de um lado, e partes do self frágeis e infantis, de outro. Esse universo é muito familiar para os indivíduos com características marcadamente esquizoides. Desse modo, o atendimento desses pacientes é uma oportunidade ímpar para investigar os processos que fundam a estrutura da personalidade.

A concepção de mundo interno defendida por Fairbairn, sem dúvida nenhuma inspirada pela discussão de Freud sobre o superego e, mais ainda, pelas teorizações propostas por Klein, é uma maneira muito sofisticada de se referir ao modo como as experiências infantis constituem a estrutura da personalidade. Ao mesmo tempo em que estabelece uma linha de continuidade entre os aspectos patológicos do psiquismo e as experiências traumáticas vividas com os objetos primordiais, esse modo de conceber as coisas refuta qualquer possibilidade de estabelecer relações simplistas de causa e efeito. É preciso considerar que as interações da criança com o ambiente vão moldando, ao longo do tempo, as estruturas internas. A introjeção dos objetos internos, portanto, é o resultado de um processo longo, composto por uma profusão de experiências e não por acontecimentos isolados. Além disso, a relação da criança com o ambiente passa a estar, a partir de um determinado momento, atravessada pela presença constante e ruidosa dos objetos internos, o que torna as coisas ainda mais complexas.

Um sistema teórico tão sofisticado como esse só poderia ser construído em um ambiente de pesquisa muito específico: o setting analítico, esse dispositivo poderoso de investigação dos processos mentais criado por Freud. Em um processo de análise, todas as

195 nuances desses processos se desvelam vagarosamente, sempre de modo incompleto, ao olhar integrador do psicanalista.

Fairbairn, ancorado nesse setting de investigação, ficou fascinado com a prevalência do fenômeno da esquizoidia, que parecia residir na base da estruturação da personalidade de todos os seus pacientes: histéricas, soldados, crianças... Partindo disso, nosso autor erigiu todo um sistema teórico muito original no âmbito da psicanálise.

Apesar de fascinado por aquilo que o setting analítico o permitia vislumbrar, Fairbairn não cansava de reiterar que o psicanalista não era e não podia pretender ser alguém que se limita a investigar o modo de funcionar dos pacientes. Há, propõe nosso autor, uma implicação necessária do psicanalista com os seus pacientes, que não condiz com o princípio da neutralidade que, supostamente, rege a prática do cientista (e do psicanalista ‘ortodoxo’).

Desse modo, nenhuma clínica pode viver só de insights formidáveis sobre o funcionamento do mundo interno. Qualquer análise que se preze se desenrola em uma relação transferencial e os processos de transformação mais importantes se dão necessariamente na relação corpo-a-corpo entre paciente e analista.

No caso dos pacientes esquizoides de Fairbairn, talvez o aspecto mais marcante deles seja o contraste entre a familiaridade com que transitam nos meandros do terrível universo interno e o jeito trôpego, atrapalhado de se relacionar com o universo externo, com os outros.

Essa distinção que estamos propondo entre a familiaridade do paciente esquizoide com o funcionamento do seu mundo interno e a sua dificuldade de se relacionar com os outros, de alguma forma, se reproduz na obra de Fairbairn. As suas construções sobre o mundo interno são grandiosas e o tornaram uma referência importante na tradição psicanalítica. Entretanto, há construções mais incipientes, inacabadas sobre os processos intersubjetivos que também comparecem em sua obra e que, até hoje, receberam muito menos atenção.

196 Como buscamos demonstrar, nos momentos grandiosos, Fairbairn trouxe contribuições importantes para a discussão sobre as forças libidinais e propôs um novo modelo de estrutura mental que incorporou em sua própria estrutura uma concepção do desenvolvimento inicial primitivo.

Por outro lado, nas passagens menos conhecidas de sua obra, o autor trouxe para a psicanálise, de modo rudimentar, contribuições originais sobre a brincadeira e a arte. Também se permitiu recriar o setting psicanalítico de modo a adaptá-lo às necessidades emocionais de seus pacientes. Lançou novas luzes para a discussão sobre a experiência de perda e o sentimento de culpa. Propôs, a partir de sua experiência pessoal, um novo modo de compreender a repercussão das experiências traumáticas na relação do sujeito com o seu corpo.

Ao longo da presente tese buscamos dar o destaque devido para os insights fundamentais do nosso autor sobre o funcionamento do mundo interno. Ao mesmo tempo, salientamos também as passagens menos conhecidas de sua obra, as construções mais incipientes, inacabadas, mas nem por isso menos relevantes ou menos férteis.

197

Referências bibliográficas

Armstrong-Perlman, E. (1994) The allure of the bad object. In J. Grotstein & D. Rinsley (orgs.) Fairbairn and the origins of object relations. New York & London: The Guilford Press.

Balint, M. (1957) Criticism of Fairbairn´s generalization about object-relations. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

Bollas, C. (2000) Hysteria. São Paulo: Escuta.

Birtles, E. e Scharff, D. (1994) Introduction: working towards the theory of object relations. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson.

Celani, D. (1998) Structural sources of resistance in battered women: a fairbairnian analysis. In N. Skolnick e D. Scharff (orgs) Fairbairn then and now. New York: The Analytic Press. Celes, L. A. (2006) Teoria da libido e teoria das relações de objeto: confronto e

aproximações? Pulsional: Revista de Psicanálise, 188, 5-13.

Celes, L. A.; Alves, K. C. M.; Santos, A. C. G. (2008) Uma concepção psicanalítica de personalidade: teoria das relações objetais de Fairbairn. Psicologia em estudo, 13(1), 53- 61.

Fairbairn, W. D. R. (1932) The nervous child. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1934) Imagination and child development. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1936) A critique of educational aims. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1937) Arms and child. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

198 ___________________ (1938a) Prolegomena to a psychology of art. In From instinct to self:

selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1938b) The ultimate basis of aesthetic experience. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1939a) Psychology as a prescribed and as a proscribed subject. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1939b) Sexual Delinquency. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1940) Schizoid Factors in the personality. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1941). A Revised Pschopatology of the psychoses and psychoneuroses. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1943a) The repression and the return of bad objects (with special reference to the war neuroses). In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1943b) The war neuroses: their nature and significance. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1944) Endopsychic structure considered in terms of object-relations. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1946) Object-relationship and dynamic structure. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1949) Steps in the development of an object-relations theory of the personality. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

___________________ (1951) A synopsis of the development of the author´s views regarding the structure of the personality. In Psychoanalytic studies of the personality. London: Tavistock, 1952.

199 ___________________ (1952) Experimental aspects of psychoanalysis. In From instinct to

self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1954) The nature of hysterical states. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1955) In defence of object relations theory. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1956a) The Schreber case. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1956b) Reevaluating some basic concepts. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1957) Psychoanalysis and mental health. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

___________________ (1958) On the nature and aims of psychoanalytic treatment. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

Figueiredo, L. C. (2000) Presença, implicação e reserva. In L. C. Figueiredo & N. Coelho Junior Ética e Técnica em Psicanálise. São Paulo: Escuta.

_________________ (2003) Subjetivação e esquizoidia na contemporaneidade: questões metapsicológicas. In Elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003.

Figueiredo, L. C. & Araujo, T. (2003) Fairbairn em sete lições. São Paulo: Escuta.

Freud, S. (1917) Luto e Melancolia. In Obras completas. Volume 12. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Foulkes, S (1957) Comments on Fairbairn´s paper. In From instinct to self: selected papers of W. R. D. Fairbairn, vol. I. London: Jason Aronson, 1994.

200 Greenberg, J. R. & Mitchell, S. A. (1983) Object Relations in Psychoanalytic Theory.

London: Harvard University Press.

Grotstein, J. (1979) Psychoanalytic concept of borderline organization. In J. LeBoit & A. Capponi (orgs.). Advances in Psychotherapy of the borderline patient. New York: Jason Aronson.

___________ (1994) Endopsychic structure and the cartography of the internal world: six endopsychic characters in search of an author. In J. Grotstein & D. Rinsley (orgs.) Fairbairn and the origins of object relations. New York & London: The Guilford Press.

___________ (1998) A comparison of Fairbairn´s endopsychic structure and Klein´s internal world. In N. Skolnick e D. Scharff (orgs) Fairbairn then and now. New York: The Analytic Press.

___________ (2000) Who is the dreamer who dreams the dream? A study of psychoanalytic presences. Hillsdale, NJ: Analytic Press.

Grotstein, J. & Rinsley, D. (orgs.). (1994) Fairbairn and the origins of object relations. New York & London: The Guilford Press.

Guntrip, H. (1961) Personality structure and human interaction: the developing synthesis of psycho-dynamic theory. London: Karnac Books.

____________ (1962) The clinical-diagnostic framework: the manic-depressive in the light of the schizoid process. In Schizoid Phenomena, Object Relations and the Self. London: Karnac Books, 1992.

____________ (1975) My experience of analysis with Fairbairn and Winnicott. The International Journal of Psychoanalysis, 2(2), 145-156.

Kernberg, O. (2002) A contemporary exploration of the contributions of W. R. D. Fairbairn. Em: F. Pereira & D. Sharff (orgs.) Fairbairn and relational theory. London: Karnac.

Klein, M. (1940) Mourning and its relation to manic-depressive states. In The writing of Melanie Klein: Love, Guilt and Reparation and Other Works, 1921-1945, vol. 1. London: Karnac Books, 1992.

Documentos relacionados