• Nenhum resultado encontrado

Desde os anos 1960, a legitimação de um segmento difuso chamado MPB tenta reafirmar um centro hegemônico estético que seja representante de uma identidade cultural brasileira. Esta dissertação levantou algumas questões iniciais acerca da perspectiva ‘evolutiva’ da MPB para tentar compreender o ideário de modernidade que tem marcado a trajetória da sigla, concentrando-se no seu surgimento (durante os anos 1960) e nos dias atuais sob o rótulo Nova MPB.

Neste início de século XXI, a despeito da atuação ainda territorializada dos tradicionais veículos de massa, observa-se um contexto em que as ofertas tornaram-se infinitas e cada vez mais descentralizadas, o que contribui para a diluição da perspectiva de uma ação hegemônica, no sentido de forjar uma Nova MPB consentida por uma maioria como expressão simbólica de uma identidade nacional.

Esse mesmo contexto impacta nos critérios de legitimação de segmentos como a Nova MPB. Os dispositivos legitimadores deste início de século XXI, em lugar de desencadear debates sobre cultura popular e indústria cultural, tornaram-se parte de uma engrenagem complexa que envolve ainda processos colaborativos, curadorias e políticas de fomento com base em parcerias público-privadas. Jornais de grande circulação instalados na cidade de São Paulo passaram a fazer parte de uma dinâmica de valorização de novos modelos de negócio, nos quais estão inseridos os representantes da Nova MPB, mais atentos aos processos de que às criações em si; mais dispostos a subsistir no mercado do que a propor rupturas estéticas ou identitárias. Ou seja, ao centrarem em estratégias de produção e difusão, os agentes legitimadores e legitimados tornam os processos mais determinantes na afirmação de sua relevância do que as próprias produções simbólicas.

Ideias tangenciais ou contrárias acerca de uma suposta ‘linha evolutiva’ do segmento, incluindo declarações entusiásticas de ex-tropicalistas em relação à música de entretenimento, ou depoimentos marcados por certo ceticismo, como o do compositor Chico Buarque, em relação a um hipotético ‘avanço’ estético-sonoro nas recentes produções de música popular, são indicativos de que as noções acerca da evolução da música brasileira exigem uma constante retomada de conceitos e ideias em torno de cultura popular, cultura de massa, identidade e modernidade, levando-se em consideração ainda modos de escuta, modelos de negócio e as perspectivas pós-

modernas a partir das quais é possível ‘mudar a chave’ em relação à necessidade de se estabelecerem modelos canônicos. A propósito, as observações de Stuart Hall (1992) em torno dos deslocamentos do conceito de identidade nas sociedades ocidentais do final do século XX parecem ir ao encontro das ideias que norteiam a geração da Nova MPB, identificada com o postulado de Fróes (2001) em torno da realização tropicalista às avessas promovida por uma geração que tenta realizar a novidade pela “chave do fracasso”. Para Hall, a identidade que, na concepção sociológica, costurava o sujeito à estrutura, acompanha, no sujeito pós-moderno, a transformação estrutural das sociedades no final do século XX, em que as identificações são continuamente deslocadas para os múltiplos sistemas de significações e representação cultural: “as pessoas não identificam mais seus interesses sociais em termos de classe” (HALL, 1992). A Nova MPB, ao contrário das vertentes ‘MPBísticas’ que lutaram na linha de frente na defesa de um ideário de modernidade, não problematizam mais as estruturas sociais.

Por sua vez, ainda que se possa argumentar que a Nova MPB utiliza-se da intertextualidade para conceber suas criações, percebe-se certa defasagem nas colagens propostas, que podem sugerir remissões tanto ao século XIX (como na canção Pierrô

Lunático em relação à obra de Schönberg) quanto à tradição regional (como na canção Água em relação ao gênero popular paraense). Essa defasagem também se observa na

relação de espelhamento com os ‘clássicos’ proposta pelos agentes legitimadores da mídia tradicional, seja nos anos 1960, seja neste início de século XXI.

Os mecanismos que poderiam impulsionar uma cultura memorialista em torno de uma Nova MPB relacionam-se, assim, com o estabelecimento de novos cânones, ainda que a pulverização ou a diluição dos modelos canônicos seja uma tendência crescente no atual panorama tecnológico e sociocultural das novas produções. Como afirma Huyssen (2000, p.21), “não podemos discutir memória pessoal, geracional ou pública sem considerar a enorme influência das novas tecnologias de mídia como veículos para todas as formas de memória”. E ainda mais: não se pode desconsiderar que os agentes modificadores do mercado e da cultura midiática ajudam a compor o atual panorama sonoro, em que a propagação dos dispositivos tecnológicos de produção e compartilhamento de áudio e vídeo responde por grande parte do crescimento da acessibilidade à própria música.

Portanto, diante deste complexo panorama, falar de cânone, memória, perpetuação ou esquecimento requer o entendimento de muitas variáveis, de certa

forma, cíclicas, que parecem, por vezes, querer retomar o tempo em que não havia ainda a ideia da afirmação autoral, mas que, noutro momento, diante de uma iminente dispersão de sentidos, passa a aferrar-se a processos que deem conta de sistematizar e perpertuar a memória. As ideias nem sempre convergentes acerca das expressões canônicas não deixam de estar vinculadas à necessidade de constituição de um arcabouço memorialista da cultura. No entanto, expandir, fragmentar ou restringir o espaço dos cânones continua, ao que parece, um impasse a ser melhor avaliado neste novo século.

Depreende-se, assim, desta análise inicial que o jornalismo cultural impresso e as curadorias de programas nacionais de fomento à produção musical, ao forjarem, de forma pouco substancial, ideias de autenticidade e inovação alinhadas a conceitos e pré- requisitos igualmente pouco substanciais de editais estabelecidos pelo marketing institucional de empresas patrocinadoras, legitimam determinados segmentos em detrimento de outras estéticas/correntes artísticas/musicais. Com isso, agentes que atuam no jornalismo cultural e nas curadorias contrapõem-se, em certa medida, à perspectiva ampliada de articular as diferentes dimensões da cultura que defendem “infinitas possibilidades de criação simbólica expressas em modos de vida, motivações, crenças religiosas, valores, práticas, rituais e identidades” (PLANO NACIONAL DE CULTURA, 2009). Tais estratégias impactam, ainda, no acesso de quem produz e consome música no Brasil e – ante o que preveem as dimensões cidadã e econômica da cultura – no estímulo à criação artística, na democratização das condições da produção musical, na expansão dos meios de difusão desta, na ampliação das possibilidades de fruição do público e, ao final, no desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável dos demais segmentos da música.

Por fim, cabe ressaltar que esta pesquisa não pretendeu estabelecer qualquer juízo de valor acerca da qualidade das produções da MPB, muito menos propor caminhos para o segmento. O objetivo primordial foi sim observar como as formas de legitimação e o ideário de modernidade constituíram-se em torno da sigla, levando-se em conta o fato de que tais perspectivas estariam a serviço da construção de uma identidade unívoca relacionada ao que o historiador Eric Hobsbawm (2015) denominou “tradição inventada”.