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Quando elaborei o projeto de pesquisa sugerindo a análise do comportamento vocal de Gal Costa no disco Fa-Tal – Gal a Todo Vapor (1971), não tinha total compreensão sobre a riqueza de detalhes contextuais e artísticos que abarcaram a realização do show e do respectivo registro fonográfico. A princípio, instigou-me a pluralidade no canto de Gal, especialmente por se tratarem de gravações ao vivo e sequenciais, nas quais o ―calor‖ do espetáculo – realizado há quarenta e seis anos – ainda comove quem as escuta. No decorrer das leituras e atentas audições, foram surgindo novos dados que ampliaram enormemente a rede de informações e ―personagens‖ relacionados ao show.

O trabalho investigativo, que englobou todo o percurso de Gal Costa anterior à turnê Gal a Todo Vapor – das apresentações em Salvador, até o reconhecimento como ―porta- voz do tropicalismo‖ e ―musa do desbunde‖ – fez emergir a necessidade de tomar conhecimento sobre detalhes dos diferentes momentos da cantora. Acredito que um dos pontos mais relevantes desta pesquisa consiste na oportunidade que me foi dada de acessar informações sobre uma gama considerável de artistas, bem como da própria intérprete, e conseguir compreender relações ―opacas‖ – tão valorizadas por Waly Salomão – preciosas para o trabalho de análise aqui proposto. Da poesia concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari, ainda na década de 1950, passamos pela ebulição artística de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, José Celso Martinês, dos músicos tropicalistas e pós-tropicalistas, especialmente Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Tom Zé, Jards Macalé, chegando naqueles que absorveram um pouco de cada tendência e as imprimiram complementarmente num trabalho híbrido que não poderia receber um nome menos intenso do que Fa-Tal – Waly Salomão, Lanny Gordin e seu trio, Oscar Ramos e Luciano Figueiredo. Somente por meio dessa caminhada seria possível apontar para possíveis relações de sentido entre o gesto vocal de Gal Costa e elementos contextuais e musicais do show.

Concomitantemente ao levantamento de tais informações, deu-se a leitura de autores bastante relevantes no que concerne a reflexões sobre as vocalidades. Os estudos de Paul Zumthor, Roland Barthes, Adriana Cavarero, entre outros, enriqueceram o trabalho de escuta dos fonogramas. Passei a exercitar a percepção do potencial semântico da voz, ora descolada da palavra, ora como veículo do núcleo identitário de cada canção. Dessa maneira, captei com maior cuidado o gesto vocal da cantora, em especial nas faixas analisadas. Ao

atentar para a condução sonora do disco – da voz aos ruídos presentes na captação do áudio – pude ampliar o campo de possibilidades semânticas das faixas. Essa apuração do processo de escuta foi especialmente desenvolvida através do contato com a obra de tais autores.

Faz-se, também, imprescindível destacar a importância do uso da Semiótica da Canção, prática descritiva elaborada por Luiz Tatit, e em especial sua extensão para os estudos do canto popular brasileiro midiatizado, proposto por Regina Machado. A identificação dos elos estabelecidos entre letra e melodia em cada canção, amparados pela construção harmônica, viabilizou o entendimento sobre o papel da voz enquanto elemento de intensificação ou atenuação do projeto cancional elaborado por cada compositor. De uma maneira geral, dadas as circunstâncias de realização de Gal a Todo Vapor, como o próprio nome já sugere, as interpretações apresentadas pela cantora e reforçadas pela execução instrumental do trio de Lanny Gordin acentuaram o caráter passional de cada música. Mesmo fortemente identificada com a estética joaogilbertiana – mais explicitamente presente na parte inicial do disco, em que Gal se apresenta cantando e se acompanhando ao violão – a intérprete acabou por acentuar a passionalização como regime predominante das canções. Até mesmo aquelas em que há uma significativa presença de recursos provenientes da tematização, como o samba ―Antonico‖ (Ismael Silva) e ―Assum Preto‖ (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), receberam interpretações predominantemente passionalizadas, revelando componentes já inscritos em seus núcleos autorais, porém, não valorizados em gravações anteriores a essas. Dentre os principais recursos vocais utilizados por Gal nesse projeto, tem-se a variação constante de sub-registros, o uso de efeitos (growl), voz trêmula, gritos, escapes de ar em finalizações de frases etc. Segundo Machado (2012) todos esses traços configuram uma interpretação voltada para a passionalização, porque enfatizam no campo sonoro a expressão de componentes emocionais.

Após a escuta quase diária das canções, foi possível selecionar as cinco que foram aqui analisadas: ―Antonico‖ (Ismael Silva), ―Pérola Negra‖ (Luiz Melodia), ―Vapor Barato‖ e ―Mal Secreto‖ (Jards Macalé e Waly Salomão), e ―Hotel das Estrelas‖ (Duda Machado e Jards Macalé). No decorrer das análises, apontamos para um possível diálogo entre tais canções e outras marcantes à época e à carreira de Gal Costa, como ―Baby‖ (Caetano Veloso) – primeiro grande sucesso na voz da cantora – e ―Try‖, uma das mais conhecidas interpretações de Janis Joplin. Além disso, também detectamos elos importantes entre a criação poética de Duda Machado e Waly Salomão, e a concepção musical e visual do espetáculo. Os traumas vividos pelos poetas e por vários companheiros intelectuais, artistas,

são perceptíveis nas escolhas de repertório e interpretação apresentadas, como nas canções ―Mal Secreto‖ e ―Hotel das Estrelas‖.

Fa-Tal – Gal a Todo Vapor foi conduzido pela aura contraditória que permeava a vida da juventude contracultural carioca e brasileira. Trata-se de um trabalho marcante enquanto desdobramento do tropicalismo, especialmente no trato aglutinador de incongruências e de expressões artísticas plurais, mas que transcendeu rótulos. Por meio do show e do disco, Gal Costa reafirmou sua posição de cantora versátil, aberta aos desafios e às novidades, traço que continua alimentando ainda hoje, ao completar cinquenta anos de carreira.

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