• Nenhum resultado encontrado

Cheio de mistério e cercado de mistério, talvez as alucinações que tive as pessoas conspícuas e sem tara possam atribuir à herança, ao álcool, a outro qualquer fator ao alcance da mão. Prefiro ir mais longe...271

Sujeitos expostos à jurisdição do social e à supremacia do Estado  entregues à luz da razão de doutrinas irrefutáveis adornadas de certezas capazes de medir o espírito e de catalogar pensamentos , suprimidos por leis e costumes condenatórios e eficazes em segregação, vistos apriori como de primeira grandeza por salvaguardar o “bem comum”. A

obsessão dos ditos civilizados, possuidores da sabedoria e do poder condenando mulheres e homens a encarceramentos severos e perpétuos, extirpando direitos essenciais, negando-os a prerrogativa da liberdade. De um lado, homens de ações idôneas predestinados a curar, acobertados pelo aval do Estado e pela credulidade social, decretam-se porta-vozes do veredito da loucura e decifradores de sua origem e mistérios. Do outro, doentes sujeitados às suas anomalias e ao desajuste de suas mentes, violadores de boas condutas e infratores de normas, reduzidos à patologia que senhoreiam, catalogados a partir de teorias abstratas, despojados de cidadania e de humanidade, condenados ao lugar da salvação. O hospício, depositário de gente, reservado aos indigentes e aos antissociais. Aparato estatal medicalizado, guardião do conteúdo excludente e discriminatório da ciência, cemitério dos vivos, supressor da lucidez e palco do espetáculo da loucura. Mecanismos sociais e históricos desarmônicos, conjecturados por seres e temporalidades díspares, urgentes à pesquisa, advento de perguntas e limiar de respostas, umas e outras infindas.

Os capítulos que se propuseram à investigação da experiência manicomial de Lima Barreto buscaram elucidar as dimensões que atravessam a loucura, como a dor, a estigmatização e a pluralidade, a partir de um dissidente que desafiou a exclusividade do saber psiquiátrico, que dissecou o hospício e que trouxe consigo a marca torturante da loucura.

Vislumbrando romper com o silêncio imposto aos sujeitos sentenciados como loucos, trazendo seus olhares à história social enquanto campo de estudo, tentamos seguir de perto os processos históricos de sujeitos desapropriados de lucidez e do controle de suas vidas, experimentando suas resistências e anuências ao ambiente de opressão, a partir de negociações, obediências e negações às condições de vida impostas pelo aparato do hospício,

271

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário do Hospício; O Cemitério dos Vivos. Prefácio: Alfredo Bosi. Organização e notas: Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p.64.

compreendendo a profundidade de suas falas, ditas muitas vezes à revelia, urgentes à análise histórica e social.

No entanto, muitas questões que tangenciam o universo da loucura e de seus sujeitos se mostraram inalcançáveis por questões de cunho metodológico, uma vez que documentos que trazem a fala dos sujeitos internados são raros. Ressaltamos que nunca foi de nosso interesse o fechamento de uma questão tão dilatada quanto à experiência da loucura e que, durante o processo de análise, a pesquisa nos foi apontando outros elementos importantes à compreensão da loucura, mas que, por conta de nossos recortes temporal e espacial, da ausência de documentação necessária e da escolha e fundamentação teórica, não puderam ser investigados a fundo.

Elementos essenciais para uma análise profícua que não centralizaram nossa análise, porém, apresentaram uma infinidade de pistas para passos futuros, como: a problemática em torno da abrangência de trabalhadores negros, braçais e pobres no contingente do hospício, a relação entre loucura e trabalho, a condição das mulheres, a questão racial, a relação entre crime e loucura, a moralidade definidora de sintomas da loucura, a trajetória dos médicos dedicados à questão da doença mental no Brasil da Primeira República, como Juliano Moreira, outros intelectuais e artistas internados em hospícios, além da experiência de outros sujeitos que aparecem nos livros de registros onde se encontram os prontuários de Lima Barreto.

Entre os limites de nosso trabalho apontados e de tantos outros não percebidos, as diversas formas de instituições totais também nos apontaram possibilidades de estudos acerca da exclusão, perpassada por teorias e práticas diversas, contando com defensores e críticos, mostrando-se por vezes eficazes e em outras opressoras.

A partir da observância da escrita de si de Lima Barreto, que traz a sua experiência como paciente psiquiátrico, conseguimos alcançar aspectos que compuseram suas experiências cotidianas no cemitério dos vivos, constatando o ecletismo dos sujeitos, dos discursos e das terapias intrínsecas ao angustioso e misterioso universo da loucura.

A ausência de luz predominante na situação limite imposta pelos processos de reclusões forçadas, engendrou os desabafos do escritor que por nós foram analisados. Em tom amargo e irônico, sinalizou denúncias da vida dentro de um hospital psiquiátrico, trazendo questões do mundo da doença mental que perpassaram o seu tempo e que são ainda presentes nos dias de hoje, configurando-se como pautas de reivindicações da luta antimanicomial. Tratamentos abusivos, sequestros, violência, terapias químicas e físicas condenadas pelos

Direitos Humanos, opressão, superlotação, péssimas condições sanitárias, alimentação precária e negligencia por parte do poder público.

O hospício, a psiquiatria e a sociedade constituem a escrita desenvolvida no Diário do Hospício, que expõe o mundo sigiloso e rompe com a mudez do espaço asilar através de um escritor voltado às questões sociais de seu tempo, que tirou do dia a dia o significado de suas obras e personagens.

Lucidez e denúncia marcam a fala de Lima Barreto, que aponta para questões íntimas e coletivas diante da relação com a loucura transformada – depois de um longo processo de conflitos sociais e científicos – em campo de saber exclusivo da psiquiatria, que instaura o hospício como lugar da salvação, mas que, longe de dar asilo aos necessitados, configurou-se como lugar do cárcere, onde seus prisioneiros foram transformados em objeto de comprovação e de experimento em estudos arbitrários que comumente generalizam

diagnósticos e transformam indivíduos “improdutivos” em mão de obra fácil e gratuita, com a

justificativa da ordem e do progresso.

Os significados alcançados na investigação foram muitos, entre eles as ambiguidades e contradições de um observador/observado que a partir da concretude de suas ações, demonstra uma experiência não linear e luta para não sucumbir à situação de rebaixamento moral que enfrentou. Entendemos que a condição assumida por Lima, que observou, registrou e significou as vivências do hospício, não é apenas delineada por embates e inconcordâncias, mas tecida também por cumplicidades. Aspectos que em nada anulam sua capacidade crítica e contribuição social que resvalam na publicação das arbitrariedades e injustiças cometidas entre os quatro muros do hospício, muitas vezes guardadas a sete chaves.

As tensões e cumplicidades de Lima Barreto com o aparato que envolve a loucura aparecem em seus textos, desvendando silêncios e incoerências. No decorrer da pesquisa, buscamos respeitar a lógica própria de sua escrita, observando-a como produto de sua situação e de seu tempo, lendo-a como um testemunho suscetível à problematizações.

Lima enfatizou a visão que se tinha da loucura como a manifestação de comportamentos socialmente não aceitos e insistiu no seu caráter misterioso e interpenetrável. Condenou a associação entre loucura e incapacidade intelectual, afirmando que, como qualquer outro aspecto que perpassa a vida humana, há indivíduos diversificados. Criticou a percepção de leigos e de especialistas que acreditavam que o uso indevido da intelectualidade, como o excesso de estudo, poderia provocar a loucura, especialmente nos indivíduos despreparados para o esforço intelectual por não ter uma formação acadêmica.

Negou as explicações abrangentes e homogeneizadoras empreendidas pela psiquiatria, colocou em questão o diagnóstico médico que o teria conduzido ao hospício, pautado em justificativas raciais e em causas hereditárias. Condenou o autoritarismo do saber psiquiátrico ao estabelecer uma relação de cima para baixo com os ditos pacientes, obrigados a ceder à sua autoridade. Afirmou não aceitar todos os argumentos da ciência como verdadeiros e atribuiu o seu vício com o álcool às angustias pessoais que carregava, rebatendo os argumentos que o enfatizavam o aspecto hereditário. Denunciou a intromissão da polícia, que, a partir de uma lógica discriminatória e violenta, auxiliou a psiquiatria no sequestro dos indivíduos compreendidos como loucos e vistos como socialmente inúteis.

O hospício, longe de ser um meio terapêutico justo e eficaz, foi descrito pelo escritor como um lugar de injustiça, exclusão e miséria. Lugar da morte social, onde se aguarda a morte física  o cemitério dos vivos  , o manicômio foi apontado por Lima a partir de suas

dimensões cotidianas, cômicas e trágicas, e afirmou sobre o diário que, “nessas páginas

contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam

dentro destas paredes inexpugnáveis”, e ainda destaca: “Tenho visto coisas interessantíssimas!”272

Essas “coisas interessantíssimas” não foram pensadas apenas como um caso extraordinário de uma escrita produzida dentro do hospício e por uma espécie de “grande louco”. Buscamos vê-las como um documento capaz de nos fazer pensar acerca da

degradação social experimentada por essas pessoas que enfrentaram vigilância, disciplina, punições e controle dentro da instituição. Seria possível, assim, apreender o antagonismo fundamental entre os objetivos dos médicos e dos loucos.

Não reivindicamos a condescendência da posterioridade com relação aos textos

escritos pelos “loucos”, mas não aceitamos que sejam ignorados ou tratados apenas como

casos ou sintomas. Demarcá-los como heróis e radicais concluindo que suas vozes emitem protestos e entoam o grito dos oprimidos, é relegá-los a generalizações. No entanto, há vozes que advém daqueles que viam o mundo a partir de baixo, outras emitidas por indivíduos que enxergavam a loucura como insurreição, mas que, embora muitas vezes emitam insatisfações e protestos, não significam que seus emissores não aceitem a sociedade que os relegou à doença e ao hospício.

272 Entrevista concedida dentro do Hospício Nacional de Alienados ao Jornal A Folha em 31 de janeiro de 1920.

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário do Hospício; O cemitério dos vivos. Prefácio: Alfredo Bosi. Organização e notas: Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 295.

O escritor Lima Barreto, buscou explicar para si mesmo e para os outros, numa linguagem que estava ao seu alcance, a sua experiência, que não representa a totalidade da vida em consonância com a loucura, no entanto, elucida possibilidades de compreensão. A razão e a loucura colocadas em lados opostos, representando, todavia, duas facetas da mesma sociedade, uma questionando a outra. A normalidade, posta em superioridade, condena a loucura à irracionalidade, à imoralidade e à perversão; e a loucura, com seus sujeitos vistos de baixo, aponta hipocrisias, arbitrariedades, negligências, incoerências e insensibilidades da

sociedade dita “sã”. O louco, por mais excluído e marginalizado que seja, não existe

isoladamente dos outros indivíduos. Eles refletem e influenciam, negam e incorporam valores do seu tempo e do seu lugar, ainda que numa linguagem incompreendida e distorcida, denominada de delírio.

5 – REFERÊNCIAS

INSTITUIÇÕES E LOCAIS DE PESQUISA

Documentos relacionados