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Conforme se pretendeu demonstrar nos capítulos anteriores, a anexação da capitania de Ilhéus pela da Bahia no contexto das reformas pombalinas e a subseqüente criação de uma comarca naquele território podem ser entendidas como sintomas de um processo mais amplo de modificação nas dinâmicas de ordenamento e gestão do território da América Portuguesa na segunda metade do século XVIII. Entretanto, antes de indicarem um processo totalmente novo (ruptura), tais mudanças podem ser inscritas numa dinâmica histórica anterior, apreensível tanto a nível regional – como reflexo dessa relação de dominação/subordinação entre as duas capitanias, motivada pela dinâmica própria da economia agrário-exportadora na colônia – quanto imperial – conseqüência da onda reformadora pombalina, que também não é ruptura, senão ápice de um processo que se inicia com a Restauração, e cujas inspirações e efeitos ultrapassam em muito o reinado de Dom José I.

Tal processo teve no redesenho da estruturas jurisdicionais da colônia e na política de edificação de novas vilas elementos essenciais de seu êxito, não apenas porque estes novos espaços institucionais asseguraram o reforço das estruturas de fiscalidade da colonização, mas também, e sobretudo, em virtude da possibilidade de incorporação de segmentos variados da sociedade colonial a um novo projeto político que se tentava engendrar. Para a efetivação desse projeto, portanto, foi indispensável a adesão de setores comercialmente mais dinâmicos da sociedade colonial, que se integraram a ele tanto na qualidade de agentes administrativos como econômicos, evidenciando a continuidade da empresa colonial luso-americana enquanto um consórcio entre poder público e privado. Revela, por outro lado, novas estratégias de assimilação cultural e política das sociedades indígenas existentes no território americano.

Nesse contexto, a Coroa lançou mão de uma série de dispositivos destinados ao controle e gestão do território, dentre os quais procurei analisar mais detidamente: a política de criação de vilas e fiscalização dos poderes camerários, e a abertura de estradas, que tiveram por objetivo assegurar a dominação política e a condução de um projeto econômico comum para o

171 Império, ainda que ajustado às peculiaridades regionais. A construção da comarca, por sua vez, enquanto novo objeto político, pôde também ser entendida como conseqüência de uma mudança mais ampla das práticas governativas na colônia, vinculada à emergência de um novo paradigma de gestão do território colonial, decorrente da tendência a penetração da colonização e, por conseqüência, da interiorização das estruturas de poder da metrópole e da ampliação dos instrumentos de conhecimento e representação do território colonial.

Nesse sentido, a pesquisa revelou ainda a importância estratégica de uma série de dispositivos de saber territorial destinados a legitimar e dar visibilidade à comarca, dentre os quais os relatos de viagem, registros cartográficos e memórias econômicas e topográficas produzidas por determinados agentes da colonização. Se, por um lado, o exame dessas fontes revelou seu notável amadurecimento ao longo do período estudado, a emergência do saber ilustrado e de sua pretensão de objetividade não foi capaz de neutralizar o peso dos interesses individuais dos agentes na manipulação desses instrumentos para realização de seus interesses econômicos.

No caso dos ouvidores, especificamente, a introdução desses agentes letrados no universo da colônia (e na metrópole) foi percebida como indício de ruptura com o modelo corporativo de legitimação dos Estados Nacionais na Europa Moderna, sinalizando uma nova tendência de organização administrativa e jurisdicional, pautada na superação do casuísmo jurídico e da economia de privilégios e pela ascensão dos valores universalistas e racionais. Assim, a crescente especialização do saber jurídico e dos profissionais operadores do direito, e num sentido mais amplo, a formação mesma da burocracia letrada portuguesa, devem ser entendidas enquanto estratégias de fundação de um novo pacto social no Reino e nas colônias, incorporando, às bases de sustentação do Império, setores mais dinâmicos da sociedade colonial e reinol.

Se o requisito da formação jurídica para o exercício da função de ouvidor sinaliza já essa tendência à institucionalização do direito como um saber acadêmico e legitimador de uma nova ordem social, a investigação sobre a atuação desses ouvidores na comarca dos Ilhéus revelou a importância da dimensão policial do poder desses agentes no contexto da sociedade colonial. Por meio de sua presença cotidiana no tecido social, procuraram dar cumprimento às determinações régias, assegurando o respeito às leis e aos bons costumes, e colaborando para

172 o fortalecimento das estruturas de extração do excedente colonial. Dessa maneira, o advento das novas Ouvidorias de comarca na colônia sinaliza a superação do caráter virtual da ordem jurídica régia no modelo corporativo-jurisdicional, e revela a emergência das estruturas disciplinares de legitimação da ordem social.

Por outro lado, ainda que, no mais das vezes, tenham se destacado como súditos leais do monarca e do Império, executando seu trabalho com rigor e seriedade, sua introdução em contextos coloniais restritos e específicos colocava esses agentes em contato direto com os demais sujeitos coloniais, e numa posição delicada, dado que representavam localmente o signo do poder real. No esforço necessário de adaptação e interação com os setores da sociedade colonial, terminaram por construir laços de afinidade com determinados grupos e sujeitos, e não raramente puseram em causa interesses pessoais, de caráter econômico ou não, procurando, por meio de suas correspondências, sensibilizar a atenção régia para o atendimento de seus interesses específicos ou a defesa daqueles de sua predileção.

Importante destacar ainda que, a despeito do relativo sucesso das reformas implementadas na comarca dos Ilhéus durante a segunda metade do século XVIII, a interiorização da conquista, e o desejado impulsionamento econômico das atividades ali desenvolvidas – o que incluía a usurpação de terras indígenas e a exploração do trabalho dos mesmos – foi considerado limitado, na medida em que foi incapaz de engendrar uma nova dinâmica regional para a comarca, beneficiando apenas os agentes privados envolvidos no processo de abertura de novos canais de circulação e, muito sutilmente, o progresso da pecuária bovina na região, com a abertura do mercado das vilas litorâneas. Assim, o século XIX assistirá ainda a tentativas de exploração mais efetiva do território da comarca, notadamente na sua porção meridional, que, contudo, esperarão pelo advento das colônias de imigração européia e a explosão da cultura do cacau para ganharem impulso, agravando, sobremaneira, os conflitos com as populações indígenas residentes na região.

Finalmente, afirma-se uma vez mais a importância de uma reflexão mais sistemática sobre os processos territoriais como centrais para o entendimento da experiência humana no passado, ainda mais em se tratando de contextos de colonização, que, como se tentou defender, tem no território um elemento fundamental de sua estruturação.

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