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Não sabería precisar o que me levou a encontrar o pensamento de Gilles Deleuze. Perderam-se, no tempo, as datas e as circunstâncias. Sai apenas que caminhei, durante um tempo, solitariamente, no labirinto da sua obra. Sinto-me ainda um iniciante. Um curioso. Acredito ser esta a principal qualidade de um pesquisador. Numa mistura entre entendimentos e incompreensões, deparei-me com problemas que ligados diretamente à vida em seu estado mais puro, talvez breve e bruto. Conceitos relacionados a uma prática provocativa do pensamento e que invertiam questões apresentados pela tradição filosófica, “fazer filosofia como escovações a contrapelo”. O que tanto me incomodava, se transformava no germe que me “colocava sempre em marcha”: é possível criar uma nova imagem do pensamento? Meu espírito se inquietava. Haveria motivo maior para o início de uma aventura?

Fiz-me errante, sem jamais saber o que me esperava, quanto mais eu me esforçava para encontrar uma saída do labirinto deleuziano, mais mergulhava na sua indefinição e penumbra, às vezes ante a meu desconhecimento, às vezes face a meus dogmas e crenças. Encantava-me uma filosofia que, por mais rigorosa que fosse, não me afetava metódicamente, mas, me provocava sobressaltos que iam das viagens celestes ao chão batido e duro. Entre espasmos, contorções e o exercício do pensamento fui-me envolvendo, até ser devorado completamente por um estilo, por um movimento que vacilava entre a rapidez e a lentidão, mas que sempre me incitava a seguir adiante na História da Filosofia. Assim o fiz, procurando desvencilhar-me dos metadiscursos que, como pensava Deleuze, têm por objetivo formular ou explicitar critérios de legitimidade

ou de justificação, e reivindicar para a Filosofia, a produção do conhecimento ou, a criação de pensamento, como as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não.

Toda pesquisa é antes de tudo, uma busca, como afirmou o Professor Bento Prado Júnior num curso do primeiro semestre de 2003: toda pesquisa é uma Zeethésis. Partindo deste princípio, inicio minha caminhada em direção à produção de uma Tese de Doutorado em Filosofia. Não se trata de um procedimento que me conduza a uma resposta, que esgote minhas questões ou o encontro de uma verdade por trás da escrita. Tinha como certo meu ponto de partida: o pensamento de Gilles Deleuze. Não sua totalidade num tipo de estudo sistemático de toda sua obra, mas alguns aspectos que considerava importante e que, de alguma forma, me incomodavam, ou seja, a crítica desenvolvida por este ao problema do sujeito, da constituição das noções de consciência ou do eu puro. Mas faltava-me algo. Um interlocutor direto com Deleuze, um intercessor e rival.

Aqui aconteceu a minha primeira encruzilhada, das várias que tive. Como toda encruzilhada mostra-nos uma variabilidade de direções/escolhas, cabia a fazer a escolha. E o mais inusitado aconteceu. Encontrei o que tanto buscava inicialmente: aquele que poderia proporcionar (acredito eu) uma discussão filosófica com Gilles Deleuze. Falo de Edmund Husserl, fenomenólogo176. A cada

iniciativa de produção desse diálogo exato, os pensamentos, longe de qualquer sentimento de segurança, teimavam em interromper o seu fluxo. No começo, a dificuldade de estabelecer o problema e uma coerência para tal. Sabia de meu fio

176 Há um curioso comentário feito por Leclercq a respeito do interesse de Deleuze pela fenomenologia. Vejamos: “Deleuze respeita e admira seus heróis, ele denigre seus autênticos inimigos, mas ele vê a fenomenologia com o olho de um jogador obsessivo.” (LECLERCQ apud BEAULIEU 2005: p. 87).

condutor era Gilles Deleuze. Sentia-me em relação a Deleuze como Édipo diante da esfinge: “Decifra-me ou eu te devoro”. Confesso: fui devorado...

Inicialmente a pesquisa era mais modesta que esta, ou seja, queria simplesmente tratar da crítica deleuziana ao problema do sujeito. Estabelecer um combate tornou-se urgente, incitar um rival; um outro personagem na história. Dessa maneira, o desafio foi exposto decididamente: Edmund Husserl e sua crença no eu puro como fundamento absoluto do conhecimento, diretriz e referência. Expoente dos mais significantes na contemporaneidade de uma filosofia do sujeito ou da consciência. Aliás um dos últimos representantes. É nesse cenário principal que a pesquisa se desenvolve.

Povoar a consciência de objetos. Dar a ela um estatuto de legítima organizadora. Separá-la do mundo, humanizá-la, constituir uma estrutura, um campo dócil, um plano de organização. Eis as tarefas da teoria do conhecimento, da civilização. Ou como diria Deleuze: “traçar um plano no caos”. Problemas como esses perpassam este trabalho pelo viés da filosofia de Husserl e de Gilles Deleuze e diz respeito, na verdade, à História da Filosofia Moderna e também Contemporânea. Diz respeito a toda “filosofia da consciência” e suas heranças: Que significa pensar o mundo sem a idéia de sujeito?

Lendo a Introdução da obra O Vocabulário de Deleuze, escrito por Zourabichvilli, deparei-me diante das várias situações descritas por ele, quando comenta sobre os riscos de uma leitura a respeito do pensamento de Deleuze. Vi- me em todas as situações, menos por seu movimento lógico do que pelo "coração que dispara à leitura dos textos". Entendi perfeitamente a atenção sugerida por Zourabichvilli ao dizer que "o coração" é apenas um passo na dura caminhada para se compreender o pensamento de Deleuze e suas danças. Mas faço aqui a

continuidade da confissão iniciada acima e assumida: esse primeiro aspecto de uma "quase-metodologia" foi que manteve-me "de pé" para seguir com pesquisa. De fato, a aridez da obra de Deleuze exigiu-me cuidado, mas esse cuidado muitas vezes foi insuficiente para evitar "equívocos", exageros e incompreensão. O rigor ao tratar dos conceitos deleuzianos limitados numa tese, me fez respectivamente entrar no mundo da História da Filosofia e entender acima de tudo que há uma "ação por contágio", isto é, que Deleuze escreve História da Filosofia pela via da "contaminação", quase uma epidemiologia filosófica. Neste trabalho, tentei cercar de alguma forma o movimento desse contágio: Husserl, Simondon e Tournier. Os dois últimos autores serão sempre encontrados - citados - por Deleuze em vários momentos no decorrer de seus trabalhos. O próprio Deleuze afirma sua dívida para com Simondon. Mas, como disse na Introdução do trabalho, há autores, mesmo não citados repetidamente por Deleuze, que perpassam seu trabalho de História da Filosofia "intempestivamente", como uma "sombra", é o caso de Husserl. Por mais contrasenso que possa parecer inicialmente, e concordo plenamente com isso, há sim, ressonâncias quase imperceptiveis entre esses dois autores. Se não há uma obra sistematizada sobre Hussel escrita por Deleuze, pouco importa. Isso não pode impedir-nos de visualizar nas constantes remissões e "ajustes de conta" de perguntar qual o papel do personagem conceitual Husserl, em Lógica do Sentido, por exemplo. Há, nessa obra a presença marcante da importância de Husserl para Deleuze, em especial, quando este trata da noção de acontecimento, de singularidade, de sentido. Seria uma cegueira da minha parte, negligenciar completamente as críticas dirigidas por Deleuze à fenomenologia: claro e notório à presença de um cogito, de um ego transcendental e de uma imanência reduzida à consciência - elementos

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