• Nenhum resultado encontrado

Ao analisar o genocídio de Ruanda observamos o que o essencialismo pode produzir como efeito na prática social: genocídio. A barbárie completa não ocorre somente por este motivo evidentemente: em situações específicas na qual a cultura está esvaziada de sentido, o medo e o ódio tomam conta do tecido social. É importante que observemos também que o genocídio não é somente fruto dos “bárbaros incivilizados africanos” como se ouve de forma implícita ou explícita nos discursos midiáticos e do senso comum. O essencialismo atingiu a Bósnia na mesma temporalidade do que Ruanda. A marca racial alcançou países centrais da cultura europeia como a Alemanha e a França através do nazismo: Milhões de vidas foram ceifadas pelo racismo no “templo da civilização ocidental”. Não existem pessoas bárbaras que são guiadas por seus instintos ou por sua “natureza essencialmente má”. Existem condições materiais e sociais bárbaras nas quais os agrupamentos humanos são colocados. As sucessões históricas de eventos trágicos realizados pelos seres humanos não tem local geográfico definido, mas a questão continua: A dor tem o seu lugar?

“Ruanda, um pequeno país localizado na África Central”: assim é que de praxe se iniciam vários artigos e livros que eu li a respeito deste país e dos hutus e tutsis. Em 1994, eram dez milhões de habitantes. Oitocentos mil mortos no mínimo é o resultado mais comentado do evento e sua dimensão, de certa forma, é medida por estes números. Porém, incontáveis são os refugiados, incontáveis são os órfãos, incontáveis são os mutilados, incontáveis são as casas que foram queimadas, incontáveis são as mulheres que foram estupradas, incontáveis são os traumas, incontáveis são as histórias que não são possíveis de serem narradas e, portanto, difícil é capturar de alguma forma os sofrimentos destas pessoas mesmo que elas sejam sobreviventes. Incontáveis são os facões, as granadas e os fuzis. Incontáveis são os gritos de socorro que obteve o sorriso, o sarcasmo ou o desdém como resposta. Incontáveis são aqueles que banharam Ruanda de sangue e não sentarão nos

bancos do Tribunal Penal Internacional em Arusha. Sabemos que alguns ruandeses são julgados e de tempos em tempos aparecem na comunicação midiática, em nota tímida, que foram condenados. Mas onde estariam os franceses, os belgas, os alemães e os chineses que, segundo o relatório do governo ruandês e da União Africana, financiaram o massacre? Estes Estados não deveriam também sentar simbolicamente nos bancos dos réus? Incontáveis são aqueles que promovem a guerra no continente africano. Incontáveis são os escritos da dor que a humanidade produziu e produzirá caso não mude a espiral da violência nutrida pelos essencialismos, racismos e barbáries de toda ordem. Fernando Pessoa investido de Alberto Caieiro escreveu: “O Tejo é o mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia (...) Pelo Tejo vai-se para o mundo. Para além do Tejo há a América e a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além do rio da minha aldeia.” O rio que corre Ruanda é um rio de sangue. Pelas riquezas do domínio político, econômico e cultural a Europa saiu do Tejo e dos seus inúmeros rios e montaram um sistema de dominação mundial sob a égide do colonialismo no continente africano, asiático e americano. O rio do colonialismo cortou o continente africano sob o seu controle na Conferência de Berlim. O muro de Berlim também foi construído no continente africano. O rio Sena não é tão belo quando se observa pela ótica dos cadáveres produzidos pelo governo francês através da “Operação Turquesa”. Que a barbárie nazista se transforme no Musée do Orsay33, local no qual os judeus chegaram em Paris no fim da Segunda Grande Guerra. Sim, a dor tem o seu lugar e quem dera que todos os rios do mundo fossem igual ao rio Tejo ou o rio da aldeia do poeta. Que o rio Tejo fosse sempre lindo sem precisar do sangue africano para sustentar sua nascente. O rompimento com todas as formas de essencialismo seria simbolicamente a grande travessia para que não seja mais necessária nenhuma escrita de sangue nem escrito da dor.

33 O museu do Orsay é um museu de Arte Impressionista majoritariamente sediado em Paris

próximo ao rio Sena. Anteriormente era uma estação de trem aonde chegaram os judeus sobreviventes dos campos de concentração.

BIBLIOGRAFIA

ADELMAN, Howard and SUHRKE, Astri. (2000). The Path of Genocide: The

Rwanda Crisis form Uganda to Zaire. New Brunswick : Transaction Publishers.

AGAMBEN, Giorgio. (2004). Estado de Exceção; tradução de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo.

AMSELLE, Jean Loup (1990). Logique Métisses. Antropologie de l’Identité en

Afrique et Ailleurs. Paris: Payot.

AMSELLE, Jean Loup (1999). Au Couer de l’Ethnie: Ethnie, Tribalisme et État

en Afrique. Paris: La Decouverte.

ANDERSON, Benedict. (1986). Imagined Communities: Reflections of the

Origin and Spread of Nationalism. London: Verso.

ANNUAL REPORTS TO THE GENERAL ASSEMBLY (1996-2008), in

International Criminal Tribunal for Rwanda. Disponível em: <http://www.ictr.org>. Acesso em: 13/11/2008.

ARENDT, Hannah. (1983). Eichmann em Jerusalém: um Relato sobre a

Banalidade do Mal; tradução de Sonia Orieta Heinrich. São Paulo: Diagrama &

Texto.

ARENDT, Hannah (2004). Da violência: tradução de Maria Clara Dumont. ARENDT, Hannah. (1990). Origens do Totalitarismo; tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras.

BALANDIER, Georges (1993). A Noção de Situação Colonial, Cadernos de Campo, n º 03. São Paulo: EDUSP.

BARTH, F. (1969). Ethnic groups and boundaries. Oslo: Scandinavian University Press.

BERTRAND, Jordane. (2000). Rwanda, le Piege de l’Histoire: l’Oposition

Democratique avant le Genocide (1990-1994). Paris. Karthala.

BRAECKMAN, Colette. (1994). Rwanda, Histoire d’un Genocide. Paris: Fayard. BRAUDEL, Fernand. (1972). “A longa duração”, in História e Ciências Sociais; tradução de Carlos Braga e Inácia Canelas. Lisboa: Editorial Presença.

BRINGA, T. (1996). Being muslim the Bosnian Way: Identity and Community in a Central Bosnian Village. Princeton, NJ: Princeton University Press.

BUHRER, Michel. (1996). Rwanda: Memoire d’ un Genocide. Paris: UNESCO. CASTRO-GOMEZ, Santiago. Michel Foucault y La colonialidad del Poder

.Tabula Rasa. Bogotá, n. 6, p.153-172, enero –junio 2007.

CHARTTERJEE, Parta (1986). Nationalist Thought and the colonial World: a derivative discourse in: Imagined Communities: Reflections of the Origin and

Spread of Nationalism. London: Verso, pp. 17-49, pp. 28-40.

CHRÉTIEN, Jean Pierre. (2000). L’Afrique des Grands Lacs: deux Mille and

d’Histoire. Paris: Flamarion.

CLASTRES, Pierre. (2003). A sociedade contra o Estado. In.: A sociedade

contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify.

CONRAD, Joseph. (2004). O coração das trevas. Porto Alegre: L&PM Pocket. COHEN, A. (1969).Custom and politics in the urban Africa : A study of Hausa migrants a Yoruba Town. London : Routledge & Kegan Paul.

COHEN, A. (1974). Self consciousness : an alternative antropology of identity. London : Routledge.

DE HEUSCH, Luc. (1995). “Rwanda: Responsabilities for a Genocide”,

DES FORGES, Alyson. (1995). “The Ideology of Genocide”, Issue, vol.23, n.2, pp.44-47.

DES FORGES, Alyson. (1999). Aucun Temoin ne Doit Survivre: le Genocide au

Rwanda. Paris: Karthala.

DORIS DIOP, Boubacar (2001). “Prêcher dans le désert ou miser sur l´avenir?”.Le Courrier de l´Unesco nº1 (2008), p.1. DP & A.

ERIKSEN, T. H. Culture and ethnicity: a second look. Lecture at 6th SIEF conference, Amsterdam, 21 april 1998.

ERIKSEN, T. H. (2001). Social identity, intergroup conflict, and conflict reduction. Oxford: Oxford University Press.

FANON, Frantz (1973). Piel Negras, Mascaras Blancas. Editora Abraxas: Buenos Aires.

GÊNESIS. In: A BÍBLIA: tradução ecumênica. São Paulo: Paulinas, 2002. GEERTZ, Clifford, ed. (1967) Old Societies and New States: The Quest for Modernity in Africa and Asia. New York: The Free Press.

GEERTZ, Clifford. (1973). The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books.

GELLNER, Ernest. (1983). Nations and Nationalism. Oxford: Blackwell. GELLNER, Ernest (1997). Nationalism. London: Weidenfeld & Nicolson. GIDDENS, A. (2005). Sociologia. São Paulo: Thompson.

GILROY, Paul. Entre Campos: Nações, Culturas e o Fascínio da Raça. São Paulo: Annablume, 2007.

GOUREVITCH, Philip. (2000). Gostaríamos de Informá-los de que Amanhã

Seremos Mortos com Nossas Famílias: História de Ruanda; tradução: José

HALL, Stuart. (1991). Old and new identities, old and new ethnicities. In: KING, Anthony D. (Org.) Culture, globalization and the world-system. New York: MacMillan, pp. 41-68.

HALL, Stuart (2009). Quando foi o pós-colonial? : pensando no limite. In:Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, pp. 101-128.

HALL, Stuart. (2000). “Quem Precisa de Identidade?” SILVA, Tomaz Tadeu. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, pp. 103-133.

HALL, Stuart. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A.

HAMPATÉ BA, A. (1983). História geral da África. São Paulo: Ática, UNESCO, vol. I, cap. 8.

HATZFELD, Jean. (2005). Uma Temporada de Facões: Relatos do Genocídio

em Ruanda; tradução: Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras.

HINTJENS, Helen. (1999). “Explaining the 1994 Genocide in Rwanda”, The

Journal of Modern African Studies, vol.37, n.2, pp.241-286.

HOFBAUER, Andreas. Entre olhares antropológicos e perspectivas dos estudos culturais e pós-coloniais: consensos e dissensos no trato das diferenças. Antropolítica: Niterói, n.27, p. 99-130, 2 sem.2009.

HOSCHILD, Adam. (1999). O Fantasma do Rei Leopoldo: uma História de

Cobiça, Terror e Heroísmo na África Colonial; tradução: Beth Vieira. São Paulo:

Companhia das Letras.

International Federation of Red Cross and Red crescent societies, “Under the Volcanoes: Special Focus on the Rwandan Refugee Crisis,” in World Disasters Report (Amsterdam: Martinus Nijhoff for IFRCRCS, 1994)

KLIEMAN, Kairn. (2003). The Pygmies Were our Compass: Bantu and Batwa in

the History of West Central Africa (Early Times to 1900). Portsmouth:

Heinemann.

LEMARCHAND, René. (1995). “The Rationality of Genocide”. Issue, vol.23, n.2, pp.8-11.

LEMARCHAND, René. “Ethinic Genocide”. Issue, vol.10, n.1/2, pp.54-61.

MAMDANI, Mahmood. (1996). Citizen and Subject: Contemporary Africa and

the Legacy of Late Colonialism. Princeton University Press.

MAMDANI, Mahmood. (2002). When the Victims become Killers: Colonialism,

Nativism, and the Genocide in Rwanda. Princeton University Press.

MAMDANI, Mahmood (2009). Savior and Survivors: Darfur, Politics, and the War on Terror. Nova York: Doubleday.

MISSE, M.(1999). Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social

da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Sociologia, Iuperj, Rio

de Janeiro. Disponível em<http://www.necvu.ifcs.ufrj.br>

MUNANGA, Kabengele. (2004). Identidade Étnica, Poder e Direitos Humanos. Casa das Africas, São Paulo, p. 21.

RAPPORT: REPUBLIQUE DU RWANDA (2007), in Comission Nationale

Independante Chargee De Rassembler Les Preuves Montrant l’Implication de l’Etat Français dans Le Genocide Perpetre au Rwanda en 1994. Rwanda.

REED, Cyrus. (1996). “Exile, Reform and the Rise of the Rwandan Patriotic Front”, The Journal of Modern African Studies, vol. 34, n.3, pp.479-501.

ROSE, Arnold M. "Minorities". SILLS, David L. (ed.). International Encyclopedia of the Social Sciences. New York: Macmilan Company, 1972. v.10 . p. 365-371. SAID, Edward W. (1978). Orientalism. New York: Pantheon.

SAID, Edward W. (1995). Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras.

SCHENE, Benjamin. (1999). Le Piege Ethnique. Paris: Dagorno.

SCOTT, Joan W (1998). A Invisibilidade da Experiência. Projeto História, nº 16, São Paulo.

SCOTT, Joan W.. O enigma da igualdade. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v.

13, n.1, Apr. 2005. Available from

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

026X2005000100002&lng=en&nrm=iso>. access on 28 Feb. 2011. doi: 10.1590/S0104-026X2005000100002

SMITH, Anthony D. (1986). The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell. TAYLOR, Christopher. (2000). Terreur et Sacrifice: une Approche

Anthropologique du Genocide Rwandais; traduction de Jean François Bare et

Christopher Taylor. Tolouse: Octares.

TURTON, David, ed. (1997) War and Ethnicity: Global Connections and Local Violence. Woodbridge, Suffolk: University of Rochester Press.

UVIN, Peter. (2001). “Reading the Rwandan Genocide”, International Studies

Review, vol.3, n.3.

VERDIER, Raymond, DECAUX, Emmanuel et CRETIEN, Jean Pierre. (1995).

Rwanda, un Genocide du Siecle XX. Paris: L’Harmattan.

VIDAL, Claudine. (1991). Sociologie des Passions: Rwanda, Cote d’Ivoire. Paris: Karthala.

VIDAL, Claudine. (2004). “La commémoration du genocide au Rwanda: Violence symbolique, mémorisation force et historie officielle. Cahiers d´etudes

africaines- Paru dans: 17, pp. 575-592.

WAAL, Alex de . (1994). “Genocide in Rwanda”. Antropology Today, Vol. 10,

nº3, pp. 1-2.

WEIL, Carola. (2001). The Protection-Neutrality Dilemma in Humanitarian Emergencies. Why the Need for Military Intervention?. International Migration

YOUNG, Robert (2005). O Colonialismo e a Máquina Desejante In: Desejo Colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça. São Paulo: Perspectiva, 2005.