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Corpo-devir, um corpo em transformação

isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além (Paulo Leminski)69

Essa dissertação propôs-se investigar a improvisação em dança como possibilidade de preparação corporal do artista cênico oferecendo como vertente a noção de corpo-devir. Perquiriu prática e teoricamente, a amplificação do potencial de movimentos e artístico dos participantes, privilegiando uma atitude de respeito e estímulo à potencialidade criativa do artista. Produziu reflexões sobre o processo da preparação corporal experimentado no Grupo de Pesquisa Corpo-devir e sobre conhecimento experiencial dos participantes, apresentando seus relatos e reflexões, com ênfase nas contribuições para a formação dos artistas da cena.

A pesquisa permitiu perceber que o devir faz parte das nossas vidas, do nosso cotidiano e do que somos - um corpo-sujeito intelectual, racional, sensorial, emocional, psíquico - múltiplo. Possibilitou perceber que o devir sustenta nossa natureza e engendra nossos corpos. Ele parte da descoberta de ser e se apropria da multiplicidade para a invenção do ser, por isso, exige a criação como processo.

Tomar conhecimento do devir no corpo é trazer à tona uma noção de corpo como matéria vivente, como processo natural da experiência que processa em si próprio um eterno poder de transformação. O devir é a passagem entre o mundo real e imaginário e ao nos colocar em contato com a multiplicidade, é a ponte que nos aproxima de universos subjetivos latentes, à procura de transformação e os corporifica.

O corpo do artista cênico é um corpo que se descobre, se reinventa, cria e propicia a criação. A improvisação em dança funde criação e execução em um só momento da experiência. Utilizada como possibilidade de preparação corporal do artista cênico, ela possibilita uma prática que integra experiências e o acesso à sabedoria do mundo impregnada no corpo e incessantemente reinventada, pois privilegia os devires de corpo para sua execução.

159 Na improvisação, tal como é aqui considerada - composição instantânea de movimentos e de sequência de movimentos - todos podem dançar porque a improvisação se torna um caminho para descobrir a própria forma de se movimentar e perceber que a dança faz parte de todos nós, seres humanos, assim como do macro e do microcosmo. Inserido nas relações de natureza e cultura, o artista cênico deve reconhecer sua sabedoria corporal como algo inerente e se predispor a redescobri-la, inventá-la e reinventá-la incessantemente. Ao criar oportunidades para o acontecimento da experiência do improvisar em dança, o saber sensível do corpo do artista tende a despertar e recriar-se e colocar o sujeito no ponto fundamental entre as impossibilidades e possibilidades corporais e pronto para a transformação.

O improvisador é alguém que trabalha o tempo todo com essas relações e essas vivências. Ele embaralha as regras convencionais da dança, pois dança para descobrir o movimento dançado. Despoja-se das certezas para expor-se à imprevisibilidade do acontecimento e da composição no instante da dança. Ele se preparara por sua vivência da composição instantânea e não pela repetição de movimentos, para estabelecer relações cinestésicas consigo, com os outros corpos e com o ambiente. É uma habilidade incorporada que articula o conhecido e o não conhecido em termos de movimento. É preciso experimentar, fazer, refazer, desfazer, num estudo sem fim, para compor uma composição completamente efêmera. A dança, arte do movimento, existe já nessa experimentação.

Somos seres inacabados em constante busca e formação, transmutados pelo que nos sucede. Devemos considerar que educar é promover experiências e nessa proposta da experiência do dançar através da improvisação - ao criar oportunidades de acontecimento a um grupo - a experiência é única para cada sujeito e abre sua subjetividade ao desconhecido de si, do corpo, da dança, do movimento e do devir que será integrado de forma diferente para cada sujeito. A experiência não pode ser pré-vista, mas deve ser vivenciada para efetuar a transformação das subjetividades, da consciência-corpo. São vivências marcantes e irrepetíveis, incertas e imprevisíveis. Nelas, explora-se a abertura dos sentidos para o movimento corporal e a capacidade - que pode ser cultivada - de transformação do corpo provocada por essa ampliação. É com esse intuito que esse trabalho desejou delinear uma noção de corpo-devir: um corpo que é transformação, mudança, desejo, em vias de torna-se.

O corpo-devir é um corpo-sujeito que pela experiência do dançar se apropria de suas potências latentes para o movimento e para a criação, e alarga suas experiências e amplia repertórios de movimento. Através dessa proposta, suponho que possamos lidar melhor com as

160 vocações artísticas, ao constituir relações de ensino-aprendizagem do corpo cênico que propiciem o acesso aos conhecimentos corporais culturalmente construídos, ao invés de nos balizarmos, ainda hoje, pelas noções de dom ou de qualidade inata - ainda que se admita ocasionalmente a existência deste -, ou pela repetição de dogmas acadêmicos que podem despotencializar muitas tentativas de expressão e formação artística. Ao supor que “todo limite é ilusório”, os limites corporais impostos culturalmente podem ser transcendidos, e isso se dá também na invenção do corpo cênico.

Assim, a proposta de preparação corporal do artista cênico através da improvisação em dança pode trazer recursos para a invenção do artista cênico contemporâneo que valoriza a exploração de movimentos e sua capacidade de criação, assim como sua capacidade de, como sujeito, atuar no mundo com originalidade e recriando-o a sua maneira e conquistando autonomia. A improvisação possibilita ainda potencializar os processos de ensino-aprendizagem da dança e do movimento corporal à medida que nos permite distanciar da dicotomia erro/acerto proposta pelo ensino tradicional, e o consequente julgamento de valores externos àquele que dança. Desfaz qualquer dependência face à autoridade externa, fazendo com que o artista descubra seus caminhos para se apropriar do movimento.

A improvisação, assim vivenciada, é capaz de auxiliar a engendrar o corpo cênico múltiplo nas zonas de fronteira, pois, ao partir do espaço de confluência artística, ela configura uma potência de criação nos diversos processos artísticos da contemporaneidade e prepara um artista do movimento com habilidade de integrar conhecimentos e necessidades da composição cênica. Leva o artista ao conhecimento do movimento, à sabedoria do corpo e a viver o devir corporal: saber-se e permitir-se permeável para o fluxo do desconhecido, do mutável, desconstruir padrões, fórmulas e formas desgastadas para encontrar outras possibilidades de ser e mover-se. Sentir, pensar e educar-se e perceber que o corpo não é uma realidade passiva, mas que podemos nos metamorfosear todos os dias como configurações provisórias. E tomar a cada amanhecer um novo lugar no mundo.

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