• Nenhum resultado encontrado

Este estudo nasceu da ânsia por compreender as desigualdades presentes nas relações entre domésticas e patrões (as). Tomando como fontes processos criminais diversos e histórias de vida lidos a partir de uma perspectiva feminista, buscou-se analisar as relações porta adentro na cidade de Montes Claros no período compreendido entre 1959 e 1983.

O ingresso de mulheres jovens, pobres e migrantes no trabalho doméstico foi visto a partir de uma dinâmica de reprodução das desigualdades sociais e de gênero. Socializadas através de discursos e performances, essas mulheres eram preparadas desde a infância para o desempenho das atividades domésticas. Em se tratando das mulheres pobres, o aprendizado se dava, também, nas casas dos/das patrões/patroas na cidade, para onde migravam muito jovens em busca de melhores condições de vida.

As representações culturais das domésticas como sujeitos inferiores e a situação de dependência das mesmas em casa de seus patrões e patroas sustentaram espoliações cotidianas. Isso se deve também ao fato das domésticas desenvolverem suas atividades no ambiente doméstico que historicamente foi construído como espaço privado em oposição ao espaço público. A organização patriarcal da sociedade estabeleceu uma relação de assimetria entre os dois espaços, sendo que o espaço privado foi engendrado como feminino e inferior, tornando-se um lugar privilegiado para a exploração e apropriação do corpo das mulheres.

As violências sofridas pelas domésticas foram analisadas como violências de gênero, mesmo quando os agentes eram mulheres. Essas violências foram percebidas como oriundas das construções de gênero, que, ao assujeitarem os indivíduos produziram hierarquias, ou seja, lugares distintos e assimétricos para cada um na teia social.

Os processos criminais foram analisados não como depositários da verdade sobre o passado, mas como constructos sociais historicamente datados, nos quais estão presentes representações de mundo, que também atuam como tecnologias sociais construtoras de significados para os sujeitos e relações.

Nos processos de lesões corporais, atentados violentos ao pudor e estupros vimos que as domésticas eram vistas como sujeitos inferiorizados, cujo corpo podia ser degradado e subjugado pelos(as) patrões(as). As agressões, quando denunciadas e

levadas a julgamento, não resultaram em penalização dos(as) agressores(as), devido à naturalização das mesmas na organização patriarcal da sociedade. Especificamente nos processos de violência sexual, vimos que o discurso jurídico baseava-se na moral sexual e nos atributos de honestidade e recato para julgar os crimes. Percebemos, assim, que os discursos e práticas jurídicas também atuaram como tecnologias sociais ao reproduzirem a desigualdade das relações sociais do sistema sexo-gênero.

Em três dos processos criminais, dois de lesão corporal e um de estupro, as patroas figuram como rés. Analisamos essas ações como violências de gênero, visto que são próprias da organização patriarcal da sociedade. As mulheres que agrediram fisicamente as domésticas fizeram-no norteadas pelas construções culturais do sistema sexo-gênero que as condicionaram a desempenharem o papel de donas-de-casa e mãe de família, construções que se fizeram paralelamente à da doméstica como inferior e desqualificada cujas ações deveriam ser vigiadas e controladas a fim de garantir a harmonia do “lar” conjugal.

Na ação da patroa que ajuda seu marido a estuprar a doméstica, vemos a reafirmação do direito patriarcal do homem sobre o corpo das mulheres, ambos, patrão e patroa, agem dentro do sistema patriarcal, que legitima o acesso do homem ao corpo de suas subordinadas, seja para o trabalho, seja para o sexo.

Apesar do predomínio das domésticas como vítimas, notamos que em determinadas situações estas reagiam violentamente, como o fez a doméstica acusada de assassinar o filho da patroa para se vingar desta. Ao longo da análise do processo, tornou-se possível perceber o discurso jurídico aliado ao discurso médico na construção e separação dos indivíduos considerados “degenerados”.

Mas não era apenas pela violência que as domésticas tentavam subverter a ordem adversa de seu cotidiano. Vimos nas entrevistas que muitas se valiam de outras estratégias para negociar certa autonomia no exercício de suas funções. A conquista da confiança da patroa através de uma conduta exemplar e a constante mudança de emprego eram formas de buscar melhores condições de trabalho.

Nos processos de infanticídio em que as acusadas eram domésticas, vimos que estas o fizeram movidas, em larga medida, pelo temor de serem expulsas dos empregos, visto ser este o costume vigente no período. A mulher, cujo corpo a denunciasse de não ter se submetido às regras patriarcais e exercido a sexualidade fora do matrimônio, era punida com a supressão das condições mínimas de sobrevivência; no caso das domésticas, a expulsão da casa de seus/suas patrões/patroas. Percebemos os

infanticídios como ações desesperadas de mulheres apavoradas ante o temor da humilhação pública e da marginalização social.

As domésticas vislumbradas nesta pesquisa viviam em condições adversas, suscetíveis a múltiplas formas de agressões. A violência era o próprio motor que movia as relações porta adentro. Essas relações assim se urdiam devido às assimetrias estabelecidas no campo de forças do sistema sexo-gênero.

Este estudo não pretendeu esgotar o tema, visto que ele consistiu num olhar historicamente datado sobre uma realidade por demais complexa, a qual exige múltiplas abordagens.

Documentos relacionados