• Nenhum resultado encontrado

Além de tentar reafirmar algumas hipóteses interpretativas, cabe também nestas considerações finais explorar aspectos que talvez não tenham sido explicitados no desenvolvimento deste trabalho.

Um destes aspectos é o que diz respeito a um caminho diferente que procurei construir em relação ao que Ferreira Gullar postula sobre as questões da autoria e da referencialidade no que concerne à poesia augustiana. Se, por um lado, divirjo da perspectiva desenvolvida por Maria Esther Maciel no seu consistente trabalho sobre a obra poética de Augusto dos Anjos,327 não a concebendo tal como a crítica mineira como um “cemitério de papel”, por outro não estou de acordo com certas considerações feitas pelo escritor de Vanguarda e subdesenvolvimento. Algumas delas, parecendo mesmo, muito deterministas e generalizantes. Se em determinados momentos, tal como ele, ventilo a hipótese de ressonância entre a figura do autor e a do eu-lírico, não o faço através da referência a uma espécie de determinismo histórico ou contextual (rever citações p. 5 e 113, nota 300).

Ao postular que o poeta do Eu permanece enquanto vestígio, enquanto sombra na obra, não nego a importância do contexto, mas, por outro lado, não dou a ênfase que o poeta-crítico maranhense concede para ele. Em determinado momento do terceiro capítulo (p. 113) lanço a hipótese de que o meio serve apenas como ponto de partida. Na verdade, o que também diferencia minha posição da de Ferreira Gullar vincula-se a uma visão díspar do que se pode entender, digamos, por campo referencial. Na minha perspectiva, a referência não está relacionada somente ao concreto, ao empírico, ao imediato. No universo artístico, ela se dá também em nível de conhecimento, idéia, intuição.328

327 O cemitério de papel (uma leitura do Eu de Augusto dos Anjos). Neste trabalho, a autora caracteriza a dispersão do sujeito como estando relacionada a uma espécie de fenecimento do autor. Amparada principalmente por certas teorizações de Roland Barthes e Maurice Blanchot, ela aponta para o caráter essencialmente ficcional do eu poético. Toma, portanto, um caminho bem diverso do postulado por mim neste trabalho.

328 Neste sentido, faço mais uma vez referência ao conceito de mimese tal como é proposto por Antoine Compagnon, em que ela não é entendida como cópia estanque do real, mas como tentativa de conhecimento deste: “A mimèsis é, pois, conhecimento, e não cópia ou réplica

Há por isso, em muitos momentos, um nítido preconceito de Ferreira Gullar em relação à idéia de metafísica.329 Mas na minha visada crítica, que não está pautada pela presença nem do materialismo dialético nem do histórico, esta não é sinônima de formalismo ou de abstração. Como procurei ressaltar em alguns momentos ao analisar a poesia de Augusto dos Anjos, falar em transcendência, em visão que vai além do olhar puramente físico, não significa desreferencialização. Afinal, como mencionei, citando Jean-Michel Gliksohn (cf. p. 56, nota 142), nem todo viés deformativo, ou seja, que faz uso da distorção, é sinônimo de abstração. Em Eu e outras poesias, há, à guisa de hipótese, a menção contínua ao referente, ou seja, ocorre a tentativa de conhecimento do mundo.

Parece-me verdade que o vocabulário “concreto” é uma característica de grande importância para o estabelecimento do modernismo330 da poesia de

Augusto dos Anjos. Entretanto, não só aí podemos ver a presença do referente (como a pouco defendi, ele se dá também de outras maneiras) – neste sentido, a abrangência do que Ferreira Gullar chama de “palavras reais”, lembrando o seu poema citado na p. 6 deste trabalho, parece ser maior do que a vista por ele. Desta forma, deve-se também enfatizar outros fatores muito relevantes que servem para referendar a opinião de que Eu e outras poesias constitui-se num universo inovador no contexto das letras brasileiras: a valorização do fragmento, da elipse, da metáfora grotesca etc.

Juntamente com estes, outro fator que torna consistente a hipótese de que este conjunto de poesias parece estar mais perto de uma perspectiva simbolista do que, digamos, de uma naturalista/realista, é o que diz respeito à presença nele

idênticas: designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele constrói, habita o mundo.” (op. cit., p. 127).

329 Este preconceito está relacionado, sem dúvida, ao que podemos chamar, na falta de melhor termo, de visão engajada de arte de Gullar. Se na sua poesia, como parece ser análogo na música o caso de um compositor do quilate de Luigi Nono (que também foi membro do Partido Comunista), o engajamento serve para dar mais força e vigor aos poemas, por outro lado, nem sempre parece dar os mesmos frutos no que concerne ao seu labor crítico. Contudo, não se pode negar a coerência nas relações entre o seu percurso intelectual e artístico.

330 Nas últimas décadas já há quem fale de “pós-modernismo” em relação à poesia de Augusto dos Anjos. É o caso de Gilberto Freyre, que em um artigo póstumo, publicado em 1991 (“Um encontro entre dois eus de brasileiros preocupados com a renovação da língua portuguesa no Brasil.”), defende esta idéia (cf. a citação de seu ensaio na p. 29 desta tese).

do visionarismo. O visionarismo possui grande importância em Augusto dos Anjos para a expressão de uma visão deformativa do real, para o advento do enigma, das sondagens em torno do oculto. Além disso, em muitos sentidos, como procurei demonstrar, o visionário presente em Eu e outras poesias adequasse ao modelo de pharmakós, de bode expiatório sugerido por René Girard.331 Ele é uma figura muito rica em significações, trazendo em si a marca da ambigüidade.

Procurei também demonstrar como o visionarismo em Augusto dos Anjos volta-se para o âmbito da noite e como ela serve como uma espécie de paisagem332 dominante, que abarca tudo: “E a treva ocupa toda a estrada longa...”333 Ela, significando enigma e morte, em determinados momentos

transforma-se simbolicamente no próprio eu. Este, quando isto ocorre, pelo poder de seu olhar além do olhar, transcende sua dimensão individual para tomar uma amplitude cósmica, para se converter num verdadeiro eu-mundo.

Falando desta relação tensa, pautada muitas vezes pela crise, entre o eu e o mundo, em determinado momento do terceiro capítulo expandi o enfoque para além do seu caráter simbólico. Busquei, pautado pelo que julguei como sendo indícios, defender a hipótese de que existe a presença de vínculos entre a figura do autor, Augusto dos Anjos, e do eu expresso em sua poesia. Acredito ter dado uma solução original para o problema. Busquei sair da lógica do “ou/ou”, para estabelecer a alternativa do “e/e”. Ou seja, procurei não cair em nenhum destes dois extremos: ou o eu que aparece na obra é pura ficção, ou, pelo contrário, tudo na obra é revelação, tudo serve para dar vazão à autobiografia. Postulando que a representação em arte significa retórica, simulação, mas também espaço de expressão, com algum grau de fidedignidade, de sentimentos, sensações e idéias, propus que o eu, em sua pluralidade, manifesta tanto conteúdos ficcionais como também àqueles concernentes ao que podemos chamar de reveladores de uma experiência vital. Portanto, não defendi no trabalho a síntese entre o eu-lírico e a

331 Além de Girard, como procurei demonstrar, as teorizações empreendidas por José Miguel Wisnik e Davi Arrigucci Jr. também foram relevantes para a análise de como o bode expiatório aparece na poesia de Augusto dos Anjos.

332 Sobre esta questão, chamo a atenção do leitor para o que é dito nas p. 101 e 102 deste trabalho.

figura do autor, mas sim a existência de certos ecos entre estas duas instâncias distintas.

Trazendo para a obra traços de sua subjetividade, o criador parece expor, portanto, de alguma forma, um modo de ser e estar no mundo. Mesmo numa poesia que faz, em muitos momentos, a apologia do nada, como é a de Augusto dos Anjos, não se pode, a título de hipótese, levar ao extremo a idéia do vazio do referente. Desta forma, como busquei defender no final do segundo capítulo, toda menção ao referente é a concessão de um atributo.334 Neste sentido, estas palavras de Antoine Compagnon, com as quais critica a perspectiva puramente auto-referencial da literatura, podem ser utilizadas para referendar uma visão em que o referente não é totalmente alijado do domínio literário:

Assim, reintroduzir a realidade em literatura é, uma vez mais, sair da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos – ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura –, e voltar ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente: o fato de a literatura falar da literatura não impede que ela fale do mundo. Afinal de contas, se o ser humano desenvolveu suas faculdades de linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem.335

Antes de concluir, gostaria de abordar um pouco mais a tese do trabalho. Ao explorar a significação simbólica da noite em Augusto dos Anjos, procurei demonstrar como as suas três conotações estão relacionadas a uma perspectiva estética que transcende o figurativismo, o olhar retiniano, buscando vê-la como uma poesia marcada por traços característicos de correntes estéticas deformativas, especificamente o Simbolismo, o Expressionismo e o Surrealismo. Ao fazer este tipo de enfoque não foi meu intento filiar Augusto dos Anjos a um determinado movimento, mas sim tentar construir, tendo como base as contribuições teóricas advindas destas três correntes artísticas, uma maneira singular de compreensão do conjunto de poemas reunidos sobre o título de Eu e

334 Entende-se aqui, na perspectiva por mim adotada, que o referente não é somente de domínio interno, pertencente unicamente à literatura. Assim sendo, não estou postulando uma visão auto- referencial da poesia de Augusto dos Anjos.

outras poesias. Desta forma, o exercício feito nesta pesquisa foi muito mais comparativo do que simplesmente associativo. Augusto dos Anjos não é stricto sensu um poeta simbolista, expressionista ou mesmo surrealista, mas sua poesia possui afinidades em relação a estes movimentos estéticos.336 Principalmente com os dois primeiros, que foram mais explorados neste trabalho.

Por fim, é importante retomar a expressão que utilizei na introdução desta pesquisa para me referir ao esforço de meu trabalho crítico e de seus limites, ou seja, a expressão: insuficiência fundamental. Não necessariamente esta tem que ser vista como carência. Ao lançar-me também à errância, ao propor soluções que, como todo labor centrado na poesia, devem trazer consigo, pelo menos em parte, a marca do provisório, espero com isso ter aberto caminhos, novas perspectivas. Afinal, generalizando o que propõe Arrigucci na sua análise da poesia de Drummond, “Os poemas têm sempre, como é próprio deles, dimensões escondidas...”337 Espero que as dimensões aqui possivelmente reveladas auxiliem na abordagem de outras dimensões que permanecem ocultas na poesia de Augusto dos Anjos.

336 Aliás, é importante ressaltar que Augusto dos Anjos possivelmente nada ficou sabendo acerca da produção artística dos expressionistas, seus contemporâneos – poetas como Georg Heym, Georg Trakl, Alfred Lichtenstein e Ernst Stadler, entre outros, nasceram e morreram mais ou menos na mesma época do poeta do Eu. Quanto ao surrealismo, vale lembrar que o movimento se formou somente nos anos vinte. O primeiro manifesto de Breton é de 1924.