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CAPÍTULO 4 – DIREÇÃO DO MUSEU DA INCONFIDÊNCIA

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da pesquisa, buscamos compreender a importância da escrita historiográfica de Raimundo Trindade no contexto político, cultural e religioso brasileiro da primeira metade do século XX. Expoente de uma corrente historiográfica regionalista (historiografia mineira) surgida em meio aos debates políticos sobre a construção da identidade da nação brasileira, Trindade elegeu como seu principal objeto de estudo a Igreja Católica. Como efetivo membro dessa instituição, para a qual destinou nada menos do que cinco décadas da sua vida no trabalho espiritual e na educação cristã, ele se destacou também como um dos mais notórios nomes da historiografia eclesiástica brasileira, sendo, até hoje, uma das principais referências no estudo da trajetória histórica da Igreja Católica em Minas Gerais e no Brasil.

Sua escrita histórica, mesmo que identificada com uma vertente historiográfica regionalista, transcendeu os limites do estado de Minas Gerais e alcançou reconhecimento e notoriedade a nível nacional. Impossível não se identificar nas pesquisas e estudos históricos que foram sendo realizados a partir da segunda metade do século XX e início do XXI, ligados ao tema da Igreja Católica no Brasil, referências a algumas de suas obras. A “Arquidiocese de Mariana”, escrita em fins da década de 1920, representa o que há de mais completo no estudo da Igreja Católica em Minas. Muitos historiadores ainda hoje recorrem a essa obra de história com o objetivo de entender a Igreja Católica na contemporaneidade.

Se no período colonial e imperial a Igreja era entendida pelo estado monárquico como uma força auxiliar no processo de civilização e regramento da população (sendo os agentes religiosos confundidos como meros funcionários do rei), com a proclamação da República e o fim do regime do padroado régio, passou a lutar constantemente pela sua liberdade como instituição e pela retomada de seu poder social. Nas primeiras décadas da República, período historicamente conhecido por uma proposta política de governo laica e secularizadora, a Igreja Católica se reorganizaria como instituição no sentido de reivindicar uma maior presença junto à sociedade brasileira.

A trajetória de Raimundo Trindade como historiador se iniciou justamente no momento em que estado republicano e Igreja rompem relações no Brasil. Como sacerdote da Igreja Católica, tendo concluído sua formação religiosa no ano de 1908, esse historiador mineiro vivenciou as profundas transformações impostas pela República e pela ideia de modernidade que povoava o imaginário político e cultural das nações europeias e do Brasil. Modernizar o

país implicava em profundas transformações no contexto social, econômico e religioso. A Igreja, vista pelas autoridades políticas republicanas como uma instituição conservadora e de rígida estrutura interna, portanto, pouco propensa às mudanças que a modernidade exigia, passou as sofrer com inúmeros ataques externos.

Com o fim do padroado régio, o estado republicano ao mesmo tempo em que cortou os subsídios financeiros a Igreja, iniciou um ataque sobre seus bens patrimoniais, se apossando de grande parte de suas terras. A Igreja dessas primeiras décadas da República seria identificada por uma profunda crise financeira e institucional. Raimundo Trindade dava seus primeiros passos como historiador eclesiástico e enxergou nessa crise o motor propulsor da reviravolta da Igreja brasileira. A Reforma Católica iniciada no Brasil em meados do século XIX e no território mineiro com Dom Ferreira Viçoso, teria seus resultados mais aparentes na diocese de Mariana e Diamantina somente em finais da República Velha.

Dom Ferreira Viçoso pregava insistentemente na diocese de Mariana que a reorganização da Igreja Católica como instituição seria decorrente do processo de reformulação na educação das novas gerações do clero. A modificação das disciplinas ministradas aos aspirantes à carreira sacerdotal, a necessidade de uma formação mais reclusa nos seminários (distante das atividades mundanas) e o exercício espiritual, eram algumas das exigências desse bispo da diocese de Mariana. Dom Silvério Gomes Pimenta e Dom Helvécio Gomes de Oliveira seriam os principais bispos continuadores dessa proposta reformista na diocese mineira. Raimundo Trindade, que conviveu com ambas as autoridades episcopais, projetou em sua escrita historiográfica a ideia de uma linha sucessória de bispos reformistas mineiros. Com uma escrita apologética, militante e amparada por essas autoridades episcopais, defendeu a importância histórica da Igreja no processo de civilização da população mineira e brasileira.

Nas primeiras décadas do século XX, esse sacerdote-historiador produziu uma história institucional da Igreja Católica em Minas Gerais, na qual buscou reforçar o laço identitário dos mineiros com o catolicismo ao mesmo tempo em que enaltecia o papel civilizacional dessa instituição. O conturbado contexto político republicano brasileiro exigiu das autoridades eclesiásticas uma pronta resposta aos ataques externos contra a instituição. Notando a diminuição de seu poder social, os clérigos passaram a reivindicar uma presença mais efetiva no interior da sociedade brasileira.

A Restauração Católica (1920-1930) possibilitou a união nacional dos bispos brasileiros e a inserção de inúmeros intelectuais católicos leigos nos debates sobre a importância da Igreja no Brasil. Foram realizados inúmeros eventos, festas e comemorações religiosas, por todo o território nacional, momento oportuno para que as autoridades eclesiásticas pudessem vir a público e demonstrar a importância social da Igreja. No campo intelectual, os católicos leigos foram fundamentais na produção de discursos, artigos e estudos de caráter militante e apologético. Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, João Camillo de Oliveira Torres, dentre inúmeros outros católicos leigos, saíram abertamente em defesa da Igreja brasileira nos jornais, revistas, palestras e discursos públicos.

Como sacerdote-historiador, Raimundo Trindade circulou entre dois mundos: o mundo religioso e o mundo das letras. Cinco décadas de atividade espiritual fizeram desse sacerdote um ilustre filho da Igreja Católica e do território mineiro. Percorreu inúmeras cidades do interior de Minas levando fé e esperança aos filhos do catolicismo, mas seu porto seguro sempre foram Mariana e Ouro Preto – a primeira, por tê-lo acolhido desde a juventude, durante sua formação no seminário e a qual pôde retribuir, a pedido de Dom Helvécio, exercendo várias funções religiosas na diocese; a segunda, o acolhera no início da década de 1940, quando foi nomeado pelo governo Vargas como primeiro diretor do Museu da Inconfidência.

Entre pesquisas históricas, arquivos eclesiásticos e civis e pelo profundo interesse pela preservação do patrimônio histórico e artístico (sobretudo o patrimônio ligado a religião católica), teceu profundas relações com Rodrigo Melo Franco de Andrade, mineiro como Trindade, católico como todo bom mineiro e um intelectual com enorme interesse pela tradição histórica de Minas Gerais. Ao assumir a direção do SPHAN em 1937, Rodrigo dedicou grande parte de seus esforços como intelectual na consolidação de uma política oficial de preservação do patrimônio histórico e artístico da nação.

A aproximação com o diretor do SPHAN permitiu a Raimundo Trindade circular entre os grupos de intelectuais modernistas mineiros. Sua rede de sociabilidade envolveu intelectuais como Carlos Drummond de Andrade (Chefe da Seção de História do SPHAN), Pedro Nava, Emílio Moura e João Alphonsus. No campo da historiografia, estabeleceu relações com Sérgio Buarque de Holanda, Alceu Amoroso Lima, Salomão de Vasconcelos e Augusto de Lima Júnior (com o qual promoveu intensos debates historiográficos). Como funcionário do SPHAN, foi um arguto defensor da política preservacionista criado por Rodrigo, o que gerou inúmeros

desentendimentos historiográficos com Augusto de Lima Júnior, polêmica que teve início após a escolha de Trindade como diretor do Museu da Inconfidência.

Defensor da política de governo de Vargas, o principal responsável pelo repatriamento das ossadas dos inconfidentes para Ouro Preto, Augusto de Lima Júnior se viu excluído do grupo de intelectuais que compunham as fileiras do SPHAN. Ao que tudo indica questões políticas e, sobretudo, religiosas, influenciaram na escolha de Trindade como o diretor do Museu da Inconfidência, questões que envolviam diretamente a pessoa do arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Como já discutido, Trindade foi considerado o principal intermediário da relação entre o bispo e o diretor do SPHAN. O núcleo inicial do acervo do Museu da Inconfidência (constituído majoritariamente por arte sacra) foi doado por Dom Helvécio, objetos de valor histórico e artístico que, até então, se encontravam sobre a posse privada da diocese de Mariana, no Museu Arquidiocesano.

Os ataques pessoais ao diretor do SPHAN e a forma como era conduzida a política patrimonial em Minas Gerais, foram os principais conteúdos da Revista de História e Arte, da qual Augusto de Lima Júnior era um dos principais editores. Trindade demonstrava seu apoio a Rodrigo por meio das correspondências, recurso pelo qual ambos estavam sempre em constante diálogo. Entre notícias sobre o andamento de pesquisas, sobre o levantamento de dados, entre envios e recebimentos de documentos históricos, havia quase sempre um espaço destinado a tratar das polêmicas historiográficas do dia a dia. É justamente nesses pequenos espaços, nessas entrelinhas, que conseguimos perscrutar parte da polêmica historiográfica da época.

A análise dessas correspondências, assim como a análise de conteúdo da escrita histórica de Raimundo Trindade, nos possibilitou compreender parte do contexto político, social e religioso brasileiro da primeira metade do século XX. Sua escrita historiográfica no período é fruto de uma estratégia ideológica de poder da Igreja. No momento em que a Igreja se encontrava em crise institucional e social sua narrativa contribuiu para reforçar na sociedade mineira o vínculo com o catolicismo e a religião cristã. O pedido de Dom Helvécio para que escreve uma obra sobre a história da Igreja visava, sobretudo, demonstrar a importância histórica dessa instituição secular no território mineiro. Sua missão histórica no processo de estabelecimento da ordem e da civilização desde o período colonial.

No contexto cultural, é notável sua participação na política de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Quando essa política patrimonial ainda se iniciava, Trindade ajudou a identificar e mapear o patrimônio católico religioso local. As correspondências nos mostram um historiador extremamente ativo em relação às pesquisas que lhe era atribuída por Rodrigo e o SPHAN. O profundo conhecimento sobre os arquivos eclesiásticos e civis (Mariana e Ouro Preto), a habilidade inata (ou o dom divino, como sugerido por Dom Helvécio) para a composição de narrativas históricas tornaram esse intelectual o principal interlocutor de Rodrigo Melo Franco de Andrade.

Em suas narrativas foram resgatados do passado, datas históricas, importantes nomes de artífices mineiros do século XVII e XVIII, a história de fundação das principais ordens religiosas de Mariana e Ouro Preto, as tensões que envolveram os membros do clero mineiro, a conflituosa relação entre Estado e Igreja no Brasil, a história da arte em Minas, dentre inúmeros outros fatos históricos. Evidente que nosso trabalho não encerra em si as possibilidades de pesquisas sobre esse sacerdote-historiador mineiro. Ainda há muito a ser feito.

O horizonte de pesquisa se amplia à medida que nos deparamos com outras atividades e campos de atuação percorridos por esse ilustre intelectual da primeira metade do século XX. Por exemplo, ao longo de nossa pesquisa descobrimos que Raimundo Trindade dedicou um pequeno tempo de sua vida a carreira política em Rio Doce, há algumas obras e artigos em revistas específicas sobre genealogias (tema que dividiu sua atenção com a história religiosa), foi o primeiro diretor e organizador do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana entre 1923 e 1944, foi radioamador (primeiro padre no Brasil a dedicar-se a essa atividade) e, além disso, há fontes documentais que atestam uma profunda relação com políticos de Belo Horizonte.

Portanto, aqui, nos dedicamos a compreender a concepção historiográfica desse sacerdote-historiador em relação à Igreja Católica em Minas no início do século XX, sua profunda relação com Rodrigo Melo Franco de Andrade, culminando no grande interesse pela preservação do patrimônio religioso católico, e como primeiro diretor do Museu da Inconfidência, transformando esse espaço num locus privilegiado para a produção de conhecimento e pesquisas sobre fatos e personagens históricos locais. Nessa terceira fase de sua vida intelectual, o acervo do Museu da Inconfidência iria concentrar dois temas de enorme relevância em seus estudos históricos: a religião católica, representada pela vasta coleção de arte sacra e o Movimento da Inconfidência Mineira, representado pela presença das ossadas de