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Resgatando a afirmação de Bakhtin de que as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios, é possível inferir que o discurso a respeito da tradução nos 38 anos verificados nessa pesquisa acompanhou a luta pela edificação de uma cultura própria. Seja ele auxiliando no estabelecimento de um público leitor, seja servindo como base e subsídio para críticas que fomentaram e provocaram o surgimento de uma literatura própria nacional.

O que se verificou no decorrer da pesquisa foi que o início da década de 1840 esteve marcado pelas críticas ao fato das obras existentes no Brasil não exprimirem o sentimento nacional. A falta de uma identidade brasileira na arte permeava os discursos veiculados no Diário do Rio de Janeiro no período. A defesa era por uma tradução domesticadora, tomando-se como exemplo Horácio e Cícero, que defendiam que os textos vertidos do grego deveriam receber a coloração romana.

Este discurso não vinha descontextualizado já que acompanhava o pensamento de defesa do nacionalismo feita pela primeira geração de românticos. Neste período é possível ler artigos que argumentavam que a tradução deveria exprimir pensamentos e não palavras, e que, tão importante quanto dominar a língua fonte e a língua meta, seria conhecer as duas culturas. É possível verificar também breves passagens sobre as diferentes dificuldades em verter textos em prosa e em verso, além da importância de se adequar a linguagem dos personagens traduzidos à sua condição e educação. Em resumo, o que se lê são discursos carregados de sentimento de nacionalidade na lógica

de se consolidar culturalmente a nação ao fazer literatura. A isso Antônio Candido (1981) chamou de "nacionalismo literário".

A partir de 1846 o que se vê nas páginas do jornal é uma abundância de anúncios de obra e peças traduzidas, mas pouco debate conceitual sobre os tipos de tradução. Conforme se avança para a década de 1850, o debate vai desaparecendo por completo. Em 1851 é publicado o regulamento para Interpretes do Commercio, os futuros Tradutores Juramentados. Já em 1852 a publicação do Collegio de Belas - Letras que informa a supressão das aulas de alemão e grego, mas a manutenção do latim, francês e inglês, evidencia a forte influência destas duas últimas línguas na educação. Porém, nas críticas à peças estrangeiras começa a se perceber uma maior resistência à cultura importada.

Partindo desta década percebe-se um leve deslocamento do discurso sobre tradução veiculado no jornal, antes mais centrado em teorias da tradução e a críticas ao modo de traduzir, para uma abordagem um pouco mais questionadora e ideológica sobre a presença das obras estrangeiras no polissistema cultural brasileiro. Assim, encontram-se discursos desfavoráveis ao afrancesamento e à utilização de sintaxes distantes da língua portuguesa. Aliado a estas linhas de debates, aparecem, também, questionamentos sobre a baixa quantidade de produções literárias nacionais e sobre o público leitor/expectador.

Os anúncios das peças em cartaz deixam claro que nesta década os espetáculos encenados eram em sua maioria produções francesas adaptadas à realidade brasileira. Por isso vê-se neste período uma intensificação das críticas à manutenção de expressões francesas, que possuem equivalentes em português, nas versões nacionais, e a forte influência estrangeira que vinha popularizando termos não muito simpáticos à língua portuguesa, chegando-se

a chamar esta prática de "corrupção de termos". Retorna então o debate sobre a importância em se conhecer as línguas de partida e de chegada, seus usos, costumes e sintaxe. Nesta época tem destaque a publicação dos pareceres do Conservatório Dramatico, como já visto, uma rica fonte de estudo sobre a tradução no Segundo Reinado, em especial nos anos de 1843 a 1864 e de 1871 a 1897, períodos em que atuou.

As críticas dos censores do Conservatório extrapolavam sua função, que deveria se restringir ao zelo à moral e à política defendidas pelo Governo. Por isso é recorrente ler nos pareceres deste período, críticas quanto à linguagem, ao estilo e, claro, às locuções francesas utilizadas nas obras traduzidas ao português do Brasil. Mais uma vez verificando-se o dialogismo defendido por Bakhtin, é possível perceber uma constante exaltação à beleza da língua portuguesa, fazendo o contraponto então à língua estrangeira. Nesta defesa do nacional, surge o questionamento: as traduções enriquecem ou empobrecem as línguas em que são feitas? Apesar de muito debate, a contenda não chega a um parecer final.

De 1863 a 1870 mais uma vez voltam a ser raros os textos que abordam a tradução em si, retornando às páginas do Diário em meados de 1870. A tônica é a mesma da década de 1850: textos críticos à tradução, à literatura e à arte nacional. Os discursos são contrários ao teatro francês com apelo à nacionalização da literatura. Há críticas ao público leitor que corria às livrarias a procura de obras estrangeiras, consideradas "fonte envenenada". Escritores, poetas, dramaturgos e romancistas são tachados de "agiotas do espírito" por permitirem que a escola francesa se apoderasse do teatro, do jornal e das livrarias brasileiras. Esta tônica se mantém até o início de 1878

com a publicação, em 21 de abril, do Folhetim assinado por X.Y.Z. onde constam críticas a uma tradução tão fiel, que manteve algumas coisas do francês. A partir da veiculação deste texto, até sua última edição de 31 de outubro, as referências ao termo traducção dizem respeito apenas os anúncios já costumeiros de estreias de peças e de venda de livros traduzidos.

Como já dito anteriormente, a Teoria dos Polissitemas pressupõe a existência de vários sistemas que se relacionam dialeticamente. Assim, a literatura é um dos elementos que integra as atividades sociais humanas, ou seja, como um sistema dentro de outro maior, a cultura. As traduções, consideradas fatos da cultura que as recebe, compõem um subsistema que integra o sistema literário da língua de chegada, numa relação recíproca entre todos os sistemas. A literatura - em consequência a literatura traduzida, a arte e a cultura - é então elemento fundamental à edificação da identidade nacional, fato que se percebe nas páginas do Diário do Rio de Janeiro nos 38 anos pesquisados - de 23 de julho de 1840 a 31 de outubro de 1878.

Ao promover a interdisciplinariedade entre história, tradução e jornalismo, a presente pesquisa dá a sua contribuição para a ampliação do conhecimento acerca da história da tradução no Brasil no Segundo Reinado. Através da análise do deslocamento do discurso sobre tradução presente no jornal Diário do Rio de Janeiro, foi possível encontrar as evidências da luta pela edificação de uma literatura e um teatro nacionais. Na luta pela formação de uma cultura nacional, o que variou foi o tom, a forma e a intensidade dos discursos.

Retomando a teoria do Círculo de Bakhtin, "a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais". É através dela que se estabelece o meio no qual se produzem mudanças que irão adquirir uma

nova qualidade ideológica. Ou seja, "a palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais" (BAKHTIN 2006, p.40). O que se lê nas páginas do Diário do Rio de Janeiro são registros dessa transformação social possível de registro graças às palavras impressas.

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