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Escrever sobre arte é como dançar sobre arquitetura.

Autor desconhecido

Compreender a dramaturgia na dança sob a perspectiva evolutiva implica entendê-la como um pensamento vivo, que se conecta, interage e coevolui numa dinâmica coadaptativa contínua com todas as coisas que existem no ambiente cultural em que ela se inscreve. Segundo essa ótica, prever qualquer tendência evolutiva da dramaturgia na dança parece ser uma especulação sem sentido, do mesmo modo que se supõe ser impraticável identificar sua suposta origem, dado à imprevisibilidade, à não linearidade e à simultaneidade das múltiplas trajetórias que incidem no fluxo da continuidade histórica.

Inscrita no campo da dança, esta pesquisa buscou compreender a especificidade da dramaturgia na dança, distinta da dramaturgia teatral, sob uma perspectiva coevolutiva entre teatro e dança, reunindo estudos que permitem compreendê-la sob diversos prismas. Em primeira instância, importa destacar que a dramaturgia na dança emerge no contexto contemporâneo como uma macroconfiguração dinâmica e complexa, composta por componentes matricialmente indiscerníveis, constituindo-se numa resultante transitória de um processo cego, sem autoria de um suposto mentor nem identificação de início e perspectiva de fim, decorrente de processos cumulativos de microrreconfigurações estruturais contínuas ocorridas ao longo do tempo. Estas microrreconfigurações são produzidas no âmbito dos processos relacionais entre dança e teatro, que são eminentemente contaminatórios e ocorrem em zona de transitividade. Sob esta perspectiva, a dramaturgia na dança pode ser entendida como uma resultante transitória de processos cooperativos entre teatro e dança ocorridos ao longo do tempo, inseridos em zona de transitividade.

Os processos contaminatórios configurados em zona de transitividade instauram-se somente na existência de condições favoráveis para a aproximação entre duas ou mais instâncias que apresentem afinidades conectivas. É em zona de transitividade que todas as

coisas se misturam, se afetam e se definem mutuamente, não obedecendo a um sentido linear nem a uma relação hierárquica de quem contamina quem no âmbito das relações. É ainda neste lugar em que ocorre a construção de sínteses, sejam teóricas ou artísticas, ou ainda, como aqui é entendida, a própria idéia/meme/síntese “dramaturgia” configurada sob a lógica da dança. É também em zona de transitividade que são engendradas as singularidades nos campos e nos corpos que neles cooperam para a produção de sínteses, bem como a construção de especificidades e aumento das suas respectivas taxas de complexidade.

O estudo da dinâmica de compartilhamento de características e de contaminação entre teatro e dança ocorrida em zona de transitividade permitiu compreender a dramaturgia como uma idéia, um meme, ou ainda, como uma “unidade” viral transmitida do teatro e instalada na dança, sendo replicada neste campo disciplinar, de forma que ela também pode ser entendida como fenotípico estendido da dança. Uma vez configurada na dança, a dramaturgia engendra redefinições conceituais e reconfigurações dos padrões comportamentais no âmbito do teatro/dramaturgia, fenômeno reconhecido como efeito fenotípico estendido da dança no teatro, e este, por sua vez, engendra efeito fenotípico estendido na dança, e, assim, numa dinâmica contínua e de efeitos não planejados, ambos os campos redefinem-se sincronicamente em processo de adaptação mútua. Ainda foi possível constatar que dança e teatro constituem-se em ambientes cujas lógicas organizativas oferecem-se como condições diferenciadas para a assimilação de uma mesma idéia, sendo a idéia dramaturgia entendida diferentemente em cada um dos campos, correlata às lógicas que os organizam.

Em resposta ao objetivo principal desta pesquisa, reconhece-se corpo e cena como fatores distintivos das dramaturgias na dança e no teatro respectivamente. As lógicas do corpo e da cena operam no âmbito dos processos dramatúrgicos, atribuindo ênfases distintas às dramaturgias em cada um dos campos. As dramaturgias de dança são correlatas à lógica cognitiva do corpo que dança, referindo-se estritamente à dramaturgia corporal. O corpo que dança é entendido como propositor dramatúrgico, que opera tanto no âmbito do processo dramatúrgico como no tempo-espaço presencial da cena com o propósito de intensificar sua ação comunicativa na sua interação com o espectador. Cada opção dramatúrgica de dança (e de teatro) pode ser entendida como fenótipo estendido do(s) corpo(s) propositor(es).

Cabe ainda ressaltar que a condição transitória e processual da dramaturgia na dança mostra-se vinculada às múltiplas relações de diferentes naturezas e escalas de tempo que ocorrem simultâneas e ininterruptas, incidindo na continuidade de seu processo reconfigurativo no fluxo do tempo. Seus modos de continuidade neste campo disciplinar são correlatos aos modos relacionais estabelecidos com outras formas artísticas e campos do

conhecimento, articulados aos múltiplos condicionantes que atuam nos contextos nos quais ela se inscreve. Sua condição de permanência na dança está diretamente relacionada ao sucesso adaptativo de seu design para estabilizar-se como padrão, o que se mostra condicionado a sua aceitação e penetração no ambiente cultural, fortalecidas pelos processos difusores de informação. As idéias sobre as relações entre corpo, dança e dramaturgia articulam-se no âmbito dos processos relacionais, em zona de transitividade, e propagam-se no tempo de modo não planejado.

Esta pesquisa ainda permitiu observar a dramaturgia como uma área em crescente expansão na dança ainda pouco explorada academicamente. Presume-se que este fato esteja relacionado à atual expansão da dramaturgia na dança associado à sua recente consolidação como área de conhecimento científico no cenário acadêmico brasileiro. Faz-se notar o reduzido escopo teórico sobre a dramaturgia na dança, o que faz emergir a necessidade de sistematizar informações que impulsionem novas investidas teóricas em dança/dramaturgia. Por um lado, pode-se dizer que esta necessidade ocorre também devido à ampliação das possibilidades de interlocução da dança com outros campos do conhecimento e da sua atuação na dinâmica dos processos culturais; por outro lado, esta necessidade se faz ainda em virtude processo de especialização da própria área dramatúrgica, uma vez que esta se concretiza na interação entre prática e teoria, conforme este estudo veio demonstrar. Os escritos teóricos de Aristóteles, Noverre, Laban e Stanislavski, assim como as concepções dramatúrgicas atuais elaboradas em campo acadêmico da dança e do teatro que compõem o “pleorama dramatúrgico”, além das concepções selecionadas do Dossier Danse et Dramaturgie, indiciam teoria e prática como formas não isoladas e não excludentes entre si, mas que se formulam mutuamente, formalizando-se sob diferentes lógicas organizativas, uma alavancando e adaptando-se a outra, em contínuo processo coevolutivo.

A dramaturgia, como um pensamento vivo, oferece-se à dança como uma fonte dinâmica e inesgotável de pesquisa. São várias as possibilidades de desdobramentos e de aprofundamento desta investigação. Dentre elas, destaca-se a relevância de um estudo acerca dos processos de formulação conceitual através da prática dramatúrgica com enfoque nos processos metonímicos, entrecruzando metáforas e processo de singularização das dramaturgias na dança, assim como um estudo comparativo entre dramaturgia e coreografia que busque compreender suas respectivas especificidades.

REFERÊNCIAS

ADOLPHE, Jean-Marc. Necessidade e Utopia. Obscena: Revista de Artes Performativas. n.10, 2008. Disponível em: http://revistaobscena.com/images/stories/pdf/revista_obscena _10.pdf. Acesso em: 10 set. 2009.

______. A Dramaturgia é um Exercício de Circulação para Manter um Mundo à Parte.

Nouvelles de Danse, Dossier Danse et Dramaturgie. n.31. Bruxelas: Contradanse, 1997.

AGRA, Lúcio. Performance como Ação de um Coletivo: Relato de um Experimento. Anais

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