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Com este trabalho fiz questão de demarcar a minha preocupação com a formação na área cultural no Brasil: não adianta apenas criar cursos, mas se pensar como devem ser e, principalmente, o que devem gerar nos educandos e na sociedade em geral.

A universidade brasileira, nascida no início do Século XX, é caracterizada como um espaço de formação que muito serviu apenas à branca elite econômica. Com as cotas, a cor de

nossa universidade vem mudando. Os negros, índios e pardos tiveram oportunidade de ingressar nesse espaço “para poucos”.

Imaginar um projeto que intenciona levar sujeitos excluídos do mundo acadêmico, enquanto sujeitos, como os mestres de cultura tradicional e popular, para ministrarem cursos regulares juntos a esses acadêmicos é contribuir com a descolonização dessa instituição.

Gostei de ter escolhido o projeto Encontro de Saberes, porque ele me levou a conhecer, à luz da ecologia dos saberes e de forma mais concreta, uma relação dialógica entre culturas bastante diferentes, como a popular e a científica, entre sujeitos não acadêmicos e acadêmicos, em um curso proposto para formar educadores na área da Música.

Comungo da opinião da professora que foi uma das coordenadoras do projeto Encontro de Saberes, na UFPA, em diálogo conosco: “O ensino de música nas escolas especializadas e nas universidades, via de regra, parte do conceito eurocêntrico de música. O projeto Encontro de Saberes é um enorme ganho, especialmente agora em que o conteúdo de música é obrigatório nas escolas regulares”.

Ciente de que todo conhecimento é parcial e situado, comungo da existência da incompletude dos saberes. Assim, percebi, nesta experiência analisada, o quão enriquecedor foi o encontro entre acadêmicos e mestres de cultura popular e tradicional. A história do Boi contada por seus mestres e dialogada com a produção científica gerou um saber mais próximo da realidade. Os educandos confirmaram essa interdependência entre saberes – e ignorâncias – em seus próprios instrumentos pelos quais foram avaliados.

A resistência, a perseguição sofrida por parte de autoridades oficiais, a invisibilização pela qual passaram esses grupos culturais, situados na periferia dos grandes centros, foram conteúdos que ultrapassam o olhar eurocêntrico em relação ao ensino da música.

Negar a diversidade é, sem dúvida, reafirmar a colonialidade.

Esta colonialidade comunga do imperialismo cultural e epistemológico que não está pronto para o diálogo, o respeito e o reconhecimento de outras culturas, outros sujeitos, outras etnias, outras epistemologias.

Trata-se de um outro paradigma científico, de um outro posicionamento político- pedagógico em que se busca trabalhar COM. Com esse Outro, excluído socialmente.

Focar na diversidade cultural é focar no combate ao racismo, preconceito, hierarquização e subalternização de pessoas. Focar na diversidade é focar na inclusão.

O caso aqui investigado mostrou que no entorno da Universidade havia uma série de mestres de cultura tradicional e popular que nunca haviam sido convidados ao diálogo intercultural. Esses mestres, com seus saberes imensos, como afirmaram os educandos, provaram a riqueza dos “saberes do entorno”.

Os educandos reconheceram a importância da tradição oral e dos saberes não hegemônicos, advindos da periferia. Reconheceram, ainda, que esses mestres – de cultura tradicional e popular – além de mestres são artistas plásticos e lideranças em seus grupos culturais. São detentores de uma gama de saberes.

A experiência da UFPA em articular saberes entre os saberes acadêmicos e os saberes periféricos gerou um saber mais democrático. Os educandos se sensibilizaram para a importância da diversidade cultural e epistemológica na área artístico-cultural com a experiência que vivenciaram. Infiro que experimentaram prazer – cultural – com essa experiência, se motivaram para participar dos grupos culturais e se alertaram da possibilidade de extinção de manifestações culturais, como o Boi. Certamente, se tornarão educadores de Música envolvidos com os grupos culturais populares e tradicionais da própria cidade, há tanto invisibilizados. Certamente, se tornarão educadores diferenciados por terem tido uma formação crítica.

Esta experiência comprovou que a ciência pode ser feita de mundo.

Apesar de avaliar a experiência de uma forma bastante positiva para a formação de pessoas na área cultural, reconheço que o projeto, até o presente momento, atingiu apenas 5 universidades públicas brasileiras. Sabe-se que ainda é pouco, mas, por outro lado, considero um projeto inovador e ousado. Inovador ao sair dos trâmites tradicionais que imperam na academia brasileira e ousado por enfrentar uma série de preconceitos que existem nesse espaço de formação.

Chamo a atenção para o fato de que a Universidade Federal do Pará, as outras quatro que participaram do projeto e as que virão, devem, permanentemente, fazer uma vigilância

epistemológica. Que essa experiência não se torne nostalgia e com o tempo seja esquecida. Mas sirva de estímulo para que ações como essa se multipliquem e que vozes acadêmicas e não acadêmicas produzam enriquecimento, diálogos, parcerias, inteligibilidades múltiplas.

Na realização da análise de dados deste trabalho, me baseei em dois documentos e em conversas informais que tive com uma pesquisadora do INCTI e com uma das coordenadoras do curso de Licenciatura em Música da UFPA. Confesso que fiquei com vontade de saber ainda mais sobre a experiência. Gostaria de escutar os educandos, educadores e mestres de cultura tradicional e popular. Gostaria de vivenciar uma das experiências. Gostaria de contribuir no planejamento de uma formação na área da cultura com o perfil e proposta político-pedagógica semelhante ao da UFPA. Gostaria de participar do projeto Encontro de Saberes.

Espero que este trabalho contribua para que as universidades e institutos federais repensem suas práticas político-pedagógicas e sintam-se estimulados em construir cursos para a área cultural (aqui, especificamente, artístico-cultural), de modo que a ecologia dos saberes seja materializada por meio do diálogo intercultural. Espero, também, que os mestres de cultura tradicional e popular se enxerguem enquanto sujeitos de extrema importância na formação humana.

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Vídeo:

Encontro de Saberes: a inclusão dos mestres dos saberes tradicionais na universidade – INCTI/MinC, 52 min.

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