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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento Endgame no limite da interpretação (páginas 93-96)

Talvez não tenha passado despercebido àqueles familiarizados com as diferentes versões de Endgame de punho do próprio Beckett que, por mais privilegiada que tenha sido a versão que consta na edição de 1992 da peça dos Theatrical Notebooks, ela não foi a única citada. Fiz uso da versão em inglês anterior às revisões finais do autor em dois momentos. O primeiro caso, mais simples, refere-se ao monólogo de abertura de Hamm: na versão revisada, Beckett retirou alguns dos bocejos que entrecortavam sua fala, uma alteração menor provavelmente significativa apenas por recompor a palavra “absolute”, que permanecera até então fragmentada. A escolha pela versão anterior seria nesse caso até certo ponto idiossincrática, pois a palavra em sua forma não- desmembrada não afetaria em muito meu argumento a respeito do esvaziamento progressivo de sentido a contaminar a peça como um todo. Já o segundo caso se revela mais complexo: Beckett simplificou muitas das pantomimas e das cenas envolvendo alguns objetos, tendo cortado, por exemplo, o momento em que Clov olha com a luneta para a platéia e, no caso mais importante para os meus propósitos, tudo o que envolvia o quadro voltado para a parede. Ora, por mais que a leitura do quadro que apresentei não seja necessariamente fundamental para a interpretação de Endgame que desenvolvi ao longo da dissertação, ela sem dúvida constitui-se em um ponto importante para avançar o argumento central de que a peça é capaz de internalizar a recusa a cada tentativa de interpretação dela construída como forma de fortalecer cada vez mais sua estrutura composicional. Por outro lado, a acentuação dos padrões de simetria e repetição proporcionada pelas revisões de Beckett de modo algum poderia ser deixada de lado para o que desenvolvi aqui, o que em última instância coloca minha própria interpretação em uma espécie de impasse, cuja origem pode ser remontada às hipóteses iniciais da dissertação, tal como se encontravam desde o projeto de pesquisa.

A proposta inicial desta dissertação era a de efetuar um cruzamento entre três textos de áreas variadas: de um lado, a Origem do drama trágico alemão de Benjamin; de outro, o último dos ensaios sobre metapsicologia de Freud, Luto e Melancolia; e por fim, como horizonte último do choque entre esses dois textos teóricos, Endgame. A hipótese por trás dessa junção seria derivada do seguinte raciocínio: em sua tese, Benjamin baseia sua distinção entre tragédia e drama trágico (Trauerspiel) na ideia de que nelas subsistem duas temporalidades distintas; na tragédia, o tempo fundador do sacrifício, agora tornado impossível; no drama trágico, a sucessão de catástrofes da

história cujo acesso à escatologia é vedado. Desse impedimento decorre, para o autor, um apego melancólico extremado ao mundo dos objetos, e o drama trágico seria o espaço de ostentação onde seria possível dar satisfação ao luto (cf. BENJAMIN, 2004, p.121). A teoria freudiana, por outro lado, efetua uma diferenciação importante entre luto e melancolia, que no texto de Benjamin surgem quase como sinônimos: para Freud, o luto – ou trabalho de luto – é sempre um esforço ativo que o eu assume em busca de se desligar de um objeto perdido; já a melancolia seria o resultado de um trabalho de luto que não se realiza por causa da força da identificação (de base narcísica) com o objeto perdido. Nesse sentido, o drama trágico, tal como concebido por Benjamin, estaria mais próximo da melancolia do que do luto, o que nos levaria a questionar o que exatamente dificultaria a dificuldade de seu trabalho. No giro teórico inicialmente imaginado, tanto a escatologia quanto a temporalidade trágica funcionariam como objetos perdidos que seriam alvo do apego melancólico do drama trágico. Endgame, por sua condição “pós-catastrófica”, situada na posição que Adorno teria chamado de decadência da história, surgiria então como uma possibilidade outra de temporalidade dramática, simultaneamente livre da sombra da tragédia e da escatologia e demonstrando o quão pouco restaria para além destas.

A própria tessitura de Luto e Melancolia proporcionou o ponto de partida para a investigação do conjunto de hipóteses acima esboçado. Com o acento recaindo sobre a preponderância das relações de objeto, passei consequentemente a uma leitura dos objetos de Endgame, tendo como pano de fundo a interpretação feita por Benjamin dos adereços no drama de destino. Porém, o que se revelou na observação das relações entre objetos e personagens foi que, por meio de sua insistência em uma reprodução mecânica de pedidos negados – que culminariam em mais um dos padrões de repetição levemente assimétricos que caracterizam a estrutura composicional da peça –, esses personagens estariam mais próximos de seus objetos ausentes e fraturados do que propriamente de pessoas. Dessa perspectiva, todo o conjunto de hipóteses acerca do luto teve de ser colocado em suspenso, já que a força motriz que começou a se impor à minha leitura de Endgame passou a ser guiada pela tendência à automação de seus elementos e do consequente esvaziamento nela de qualquer possibilidade de subjetividade, aliada à resistência da peça a tudo o que lhe viesse de fora por meio da internalização de quaisquer hipóteses interpretativas que dela se aproximassem. Mesmo as concepções iniciais acerca de seu tempo pós-catastrófico tiveram de ser revistas: se inicialmente a peça fora concebida como apresentando um novo tipo de temporalidade, a partir de sua

leitura cerrada acabei por concluir que esta poderia ser concebida como consistindo na tensão entre as duas formas temporais da circularidade e da progressão. A diferença, aqui, seria que ambas se encontrariam submetidas ao princípio de escassez e esgotamento que atravessa todos os níveis de Endgame, transformando circularidade em estagnação e progressão em decadência, e o resultado da oscilação de sua estrutura entre essas duas formas seria, então, uma escatologia às avessas. Por fim, a investigação da força corrosiva a qual são submetidos diversos procedimentos humorísticos – tendo como base principalmente a teoria freudiana do Witz – acabou por desvelar uma espécie de inversão da relação paródica da peça com a tradição, onde justamente a força do ataque destrutivo a esta dirigido pela peça permite que a tradição surja em cena com a máxima força.

Não é difícil perceber, a partir da observação do conjunto das “conclusões” de cada capítulo, que, se cada uma das hipóteses iniciais não chegou exatamente a demonstrar seu próprio inverso, elas ao menos tiveram de ser seriamente modificadas para dar conta do que foi construído no processo de leitura. Nesse sentido, a interpretação da cena do quadro poderia talvez ter sido substituída, já que a ideia de Endgame como uma estrutura que se fortalece ao vedar o acesso a si própria foi vista dos mais variados ângulos no decorrer da dissertação. Preferi, contudo, mantê-la aqui como resto desse objeto perdido dentre outros, o trabalho de interpretação substituindo o de luto. Além disso, esse gesto possa funcionar também como uma última demonstração (na verdade a primeira, do ponto de vista da escrita) da força com que a peça se antecipa a quem tenta interpretá-la – e, nesse caso, naquele tênue limite que a separa da realidade: quando pensamos ter descoberto uma chave-mestra para interpretá- la, ela vai ao extremo de retirar de si própria a fechadura.

No documento Endgame no limite da interpretação (páginas 93-96)

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