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É preciso falar francamente e ter coragem da verdade para assumir que somos o resultado dessa ordem discursiva. No início da pesquisa, tomados por um sentimento romântico, olhávamos para Jean Maugüé com o desejo de encontrar uma saída para sufocante realidade em que estamos inseridos, um lugar onde filosofar significa aplicar o método historiográfico (sem a perennis philosophia) pela leitura estrutural do texto filosófico. Na tentativa de resistir à captura do discurso, arriscamos utilizar os procedimentos metodológicos elaborados por Michel Foucault e escavar a região mediana, no qual, o discurso sobre o ensino da Filosofia fora constituído.

O risco exigiu um esforço dobrado, pois a formação pelo método histórico- historiográfico, convertido no Brasil, em leitura estrutural do texto, inviabilizava uma compreensão rigorosa da História. Sendo assim, o constante combate entre a semi-formação universitária e as exigências rigorosas da pesquisa tornou-se uma constante em nossa trajetória. Batalha semelhante ocorreu diretamente nos nossos corpos, pois por sermos disciplinalizados nos moldes da filosofia acadêmica contemporânea - toda tentativa de romper

125 com a estrutura lógica do texto e prosseguirmos pelas descontinuidades e dispersões – refletia no limite da resistência, na dificuldade da escrita, na palavra muda que não encontrava lugar pela falta de manejo do novo procedimento metodológico, ou, pela violenta sujeição que nossa formação nos concedeu.

Mesmo com todas as dificuldades e riscos assumidos, a hipótese que sustentou toda trajetória da presente pesquisa foi comprovada. Buscávamos, há dois anos, compreender a existência de uma ordem discursiva que sustentava o ensino de Filosofia brasileiro. Defendíamos que Jean Maugüé havia elaborado a “certidão de nascimento”134, ainda fundamentados na ideia de um sujeito, que verificando nossas dificuldades culturais tinha desenvolvido uma reflexão pessoal para suprir todas as necessidades daqueles tempos.

Contudo hoje nossa concepção foi transformada, pois, frente a todas estas evidências que apresentamos na trajetória do trabalho, assumimos nosso ceticismo em relação à existência do sujeito constituinte (Maugüé), pela constatação que o autor foi dilacerado pela força de duas formações discursivas.

A primeira, que se formou na reativação do enunciado universidade emergindo no texto A crise da Nacional e consolidando-se no discurso jurídico do Decreto n. 6.283 de 25 de Janeiro de 1934, que legitimou a criação da Universidade de São Paulo. Esta formação discursiva que mediante o objeto homem bem pensante justificou a manutenção da

universidade da elite ilustrada e objetivou formar a elite dirigente, no rigor do método e

refinamento espiritual das humanidades para conduzir o país no progresso e na ordem.

A segunda, que foi demonstrada de forma detalhada e rigorosa pelo historiador da Filosofia Ubirajara Rancan de Azevedo Marque e sustentou nossa reflexão ao enunciar a relação do método histórico-historiográfico (perennis philosophia), com a ordem discursiva maugüetiana. Na medida em que buscamos esclarecer que a formação discursiva que constitui-se na dispersão de Cousin a Guéroult - produziu práticas discursivas pelo ensino educacional francês, as consequências de tais práticas resultaram na disciplinalização filosófica de Maugüé, principalmente, pelo contato com Léon Brunschvicg, reconhecido como receptáculo do discurso histórico-historiográfico.

134 Segundo Arantes (1994, p. 62-63), Maugüé no “Anuário da Faculdade de Filosofia, com data de 1935-1935,

publicava um apanhado mais refletido delas, na forma de diretrizes para o ensino da Filosofia, um documento capital para o entendimento do rumo ulterior dos estudos filosóficos uspianos, a bem dizer sua certidão de nascimento, lavrada depois de um primeiro ano de tateios. Aliás nem mesmo o próprio Maugüé podia imaginar que trazia consigo sob medida, não no bolso do colete, mas na sua bagagem de antigo normalien nascido e crescido à sombra da tradição da filosofia universitária com a idade da Terceira República e tingida por um vago neokantismo, porém tão arraigado que nem mesmo a voga bergsoniana consegui extirpá-lo, o antídoto adequado aos males do transoceanismo”.

126 Da relação das duas formações discursivas uma ordem emerge no artigo, O Ensino da

Filosofia: suas diretrizes. Observamos que tal ordem forneceu as condições de existência para

o ensino do filósofo da elite ilustrado, que disciplinado pelo método histórico-historiográfico teria a possibilidade de filosofar em suas meditações ou pela crítica da atualidade, objetivando encontrar os princípios gerais que regem a multiplicidade das coisas. Nesta mesma ordem, entendemos que o professor de filosofia assumiria dois papéis, o primeiro mais ilustre, pois fora caracterizado como a própria Filosofia, na medida em que praticava a crítica do presente através da história da Filosofia. Mas, também considerado um professor-comentador, na medida que argumentava para seus alunos sobre os principais conceitos e característica históricas dos autores clássicos.

Além de sustentar uma formação, a mesma ordem estabelecia regras que prescreviam formas de fazer filosofia no Brasil, tendo em vista o projeto que constitui a Universidade de São Paulo. A partir da normatização, ser filósofo significava estar no verdadeiro, ou seja, possuir uma formação cultural refinada que precedesse os estudos filosóficos; seguir os preceitos da formação em História da Filosofia, no rigor da leitura do texto filosófico; e viver no presente. Todos aqueles que não se localizaram no verdadeiro, foram silenciados ou excluídos do processo.

Nestes termos, a classe trabalhadora não acessaria os patamares da universidade da

elite ilustrada, salvo engano, da existência de indivíduos-exceções que romperam com a

ordem discursiva. Também é permitido pensar na exclusão da cultura filosófica dos bacharéis e da cultura autodidata, que através da constituição do verdadeiro uspiano foi descrita como retórica por possuir uma vocação filoneísta, ou seja, seu discursos oscilavam pois estavam fundamentados em opiniões frágeis e ideias novas que desembarcavam no Brasil constantemente.

Na encenação trágica da epistémê brasileira, em que peça representada se repete na relação de dominadores e dominados, algo foi silenciado entre a emergência da ordem discursiva maugüetiana e a nossa atualidade. A Filosofia pensada em sua concepção mais ampla foi formada por uma ordem discursiva para caber e não exceder às regras estabelecidas. O desejo de formar filósofos da elite ilustrados inspirados pela doutrina da sabedoria que constituiria legisladores da razão não ocorreu, mas serviu aos interesses das classes dominantes no silenciamento e exclusão, impossibilitando a emergência de outras formas de vida filosófica. Sendo assim, se existe Filosofia no Brasil, provavelmente não habita nos departamentos ou institutos filosóficos, que passaram pela disciplinalização da ordem

127 discursiva da Universidade de São Paulo. Somente através de pesquisas futuras, seremos capazes de compreender os fenômenos que aconteceram a partir de 1936 e impossibilitaram a constituição plena do filósofo da elite ilustrado.

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