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Através de todas as características que abordei13 sobre ambos os autores, é possível perceber que eles tiveram vidas e carreiras praticamente opostas. Lima Barreto iniciou sua carreira literária visto com muitas reservas, colocado em um segundo plano da literatura nacional por conta de sua escrita direta, mais preocupada em transmitir mensagens que em produzir um objeto estético, o que causou grande estranhamento pela crítica e pelo público de sua época. Hoje vemos que essas reservas já diminuíram significativamente, haja vista a quantia de trabalhos acadêmicos que abordam a sua obra. Telmo Vergara, por sua vez, iniciou sua carreira em alta, sendo bem quisto pela crítica literária de sua época e colocado no mesmo patamar de grandes escritores reconhecidos até hoje. A figura do autor e seus livros, entretanto, caíram em um profundo esquecimento, pois sua obra não contou com nenhuma reedição, sendo encontrada apenas em alguns sebos e havendo escassas referências à ela. Seu nome, quando pesquisado na internet, remete mais à rua de Porto Alegre que foi batizada em sua homenagem, além de uma página com poucas informações sobre ele.

Luís Bueno, na introdução do já citado livro Uma história do romance de 30 (2006), ao comentar sobre o papel do historiador literário e, especificamente, sobre o estudo de Lúcia Miguel Pereira, que “se debruçou sobre a virada do século [...]” (BUENO, 2006, p.13) traz algo que, em partes, justifica a minha motivação para analisar a obra de Vergara e não de qualquer outro autor de sua época que apresentasse características semelhantes a Lima Barreto:

[...] ao invés de tentar um amplo painel que desse conta da evolução de nossa literatura, o historiador poderia trabalhar mais extensivamente sobre um momento dessa evolução. Dessa maneira, é possível romper o círculo dos “principais” autores, sempre confundidos com os “melhores” autores, e voltar os olhos para escritores cuja obra, embora possa ser vista num determinado momento como falhada, representou esforço significativo e, mesmo, muitas vezes, definidor das letras do seu tempo. A restrição aos “melhores” favorece o hábito de fazer da história literária um repisar das mesmas ideias sobre os mesmos autores, uma vez que seu escopo já aparece pré-definido, em função do que valeria a pena ou não ler.” (BUENO, 2006, p.13)

Assim, minha escolha pelos dois autores aqui estudados foi motivada: pela peculiaridade da trajetória inversa verificada na aceitação de sua obra, pois ambos contaram, no início ou no final, com algum entrave para a sua carreira, (uma dura resistência, no caso de Barreto e o esquecimento, no caso de Vergara); por características comuns entre a literatura

13 Aqui utilizo-me novamente da primeira pessoa do singular por expressar a opinião pessoal como

de um e de outro autor (temática, personagens e modo de escrita) e por notar que seria mais significativo traçar um estudo comparativo entre um autor já relativamente conhecido e estudado e outro que se tornou um ilustre desconhecido na nossa história literária, ao invés de tratar de dois autores consagrados.

Lima Barreto trouxe inovações e características que o tornaram único, além de apresentar em seu projeto literário uma ousadia e coragem incomuns entre os escritores de sua época. A obra de Vergara também trouxe inovações temáticas, como a inserção de personagens negros com bastante enfoque no enredo, o que, embora já acontecesse na literatura nacional, ainda não era muito comum na literatura de autores de sua região. Também destaco a mistura entre romance social e psicológico, que consegui verificar em seu romance, o que mostra seu entre-lugar nas duas principais características da literatura produzida nos anos 30 e que dá um tom bastante interessante à sua prosa.

As dificuldades enfrentadas por Lima Barreto no início de sua carreira e durante toda a sua vida, como explicitado no trabalho, decorreram da junção de suas características físicas, modo de vida e projeto literário, que o tornavam dissonante do coro de autores reconhecidos. Depois de sua morte, e através das mudanças na forma de pensar da crítica e dos estudiosos, seu valor vem sendo finalmente reconhecido e seu nome colocado em um lugar um pouco mais próximo daquele que, a meu ver, ele merece. Já Telmo Vergara, que teve um tranquilo início de carreira, encaixado no rol dos grandes escritores pelo valor de sua obra, como destacado pela crítica e também, possivelmente, por ser ele membro da elite cultural de sua época, caiu em um esquecimento que perdura até hoje. Podemos traçar um paralelo entre seu apagamento e a morte do narrador, aquele narrador que Benjamin (1994) nos mostra que está desaparecendo, se é que agora já não desapareceu completamente de nossa vida. Nosso tempo parece muito curto para parar e ouvir histórias de uma estrada perdida, de caminhos que não levam a um destino pré-determinado, mas que apenas vão. Não conseguimos mais apenas nos deixar levar, estamos a todo o momento controlando nossa rota a fim de não nos perdermos na estrada.

As narrações de Vergara têm um tom saudosista e melancólico parecido com as reflexões feitas durante as perambulações de M. J. e Augusto Machado, o que pode ser um dos motivos por que Vida e Morte é um dos títulos menos conhecidos de Barreto. Sobre o esquecimento de Vergara, talvez enquanto ele produzia, aproximadamente a mesma época em que Benjamin nos coloca as reflexões sobre a figura do narrador, e em uma Porto Alegre ainda com hábitos e costumes mais atrelados à vivência rural, ainda houvesse um certo interesse em ouvir “histórias tranquilas”, mas hoje nossa vida parece não mais nos permitir

esse pequeno prazer. Arrisco dizer que esse seja um dos principais motivos de não sabermos quem foi Telmo Vergara, pois sua obra carrega o cadáver de um tempo que não existe mais. Ela nos dá o testemunho de um modo de vida que não encontra mais um lugar na estrada que percorremos hoje.

Como tentei mostrar, as classificações literárias são pouco abrangentes. Dada a grande quantidade de material produzido, alguns autores acabam ocupando lugares mais escondidos na nossa história literária, ou mesmo ficando sem um lugar definido. As razões pelas quais estes ou aqueles autores permanecem na via principal de nossos estudos literários são diversas. Porém, acredito que a obra daqueles que ocupam um lugar secundário na estrada de nossa literatura nos fornece também valioso material de estudo e, para mim, causam um interesse muito maior que o estudo daqueles que percorrem a estrada principal. É esse o caso dos autores que estudei, pois eles, cada um com suas especificidades, ficaram sem um lugar garantido nas divisões da literatura brasileira. Essa falta de lugar delimitado, ao invés de ser algo negativo, é até positivo, pois, de certa forma, ambos iam contra a corrente que a maioria tentava seguir, sem adequar-se ao que era privilegiado. Ir contra essa corrente, a meu ver, é muito mais instigante que construir algo em bloco, para ser encaixado a todas as outras peças produzidas em sua série. O que me chama a atenção, em todas as áreas da vida, é aquilo que se diferencia, que se destaca, assumindo para si todas as consequências dessa atitude diversa. O perfeito e bem-acabado não chama tanta atenção quanto o diferente, o questionador, o ousado. Por conta desse interesse pelo desconhecido, pelo menos trivial, é que, nos já distantes anos da graduação, me interessei em estudar a obra de Vergara, sobre quem sempre preciso fazer uma breve explanação ao citar o nome. O mesmo interesse motivou este trabalho ao perceber que Lima Barreto, cujo nome ao ser citado traz a todos uma lembrança, mesmo que vaga, do tipo “já ouvi falar”, também não seguiu, de forma alguma, a corrente que poderia tê-lo arrastado ao imenso mar de navegantes comportados, que seguem sua rota obstinadamente, sem desvios que os possam levar a um destino diferente.

As peculiaridades de cada autor me fizeram traçar essas comparações, fazendo uma rota de interseção entre as estradas perdidas dos dois, bem como entre vida e morte, tão presentes em seus enredos e ligadas à trajetória inversa do reconhecimento de cada autor. Não objetivo, porém, finalizar essa viagem chegando a um destino, pois, assim como a vida, o estudo literário também é uma estrada perdida.

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