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4. ENTRE O PRESCRITO E O REAL DO TRABALHO

4.4 Considerações Finais

Ao analisar o trabalho como uma categoria essencialmente humana, devemos entender esse trabalho como uma atividade passível de despertar sentimentos de fracassos e vitórias. Quando estamos trabalhando, tentamos perseguir alguns objetivos que são influenciados por nossa subjetividade. Assim, muitas vezes, convocamos os recursos psíquicos mais íntimos no intuito de atender aos objetivos e resultados exigidos pela organização.

A organização do trabalho, determinada pelos níveis hierárquicos mais elevados, reflete como se desenvolvem as ações dos entrevistados para o alcance dos objetivos organizacionais. Então, qualquer setor de trabalho terá algum tipo de norma, manual ou documento que determina a condução das ações pelos trabalhadores para que o trabalho seja realmente efetivado. Entretanto, nem sempre essas ações ocorrem como o esperado, havendo anomalias de funcionamento e incoerências organizacionais não previstas.

Como vimos, o trabalho na assessoria do SCDP é regulamentado por diversas normas legais, além de ser operacionalizado por um sistema tecnológico que ajuda a conduzir a execução dos processos. Assim, percebemos que a prescrição do trabalho nessa assessoria funcionou como uma espécie de escudo, que impediu a interferência externa na execução do trabalho e favoreceu a autonomia do servidor. Dessa forma, o trabalho prescrito funcionou, como já observado por Oliveira (2006), como um comando oferecido pela organização para a

execução do trabalho, favorecendo, também, a fiscalização da tarefa. Entretanto, mesmo com todo esse aparato legal protegendo o servidor contra a pressão externa, encontramos, nas narrativas, uma espécie de tensão decorrente da relação entre os usuários do SCDP e os servidores que lá trabalham, gerando mal-estar e insatisfação no trabalho.

O real do trabalho também se fez presente no processo de divisão das tarefas entre os setores da Coordenação de Administração. Ficou constatado que a distribuição da demanda dos processos de solicitação de diárias e passagens não ocorre de forma previamente organizada. Nem a legislação vigente, nem a gestão preveem e organizam o fluxo desses processos quando estes chegam na Pró Reitoria Administrativa, gerando frustração e constrangimentos que favorecem o sofrimento.

A situação mais clara de discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho real apareceu no Setor de Cadastro, que, coincidentemente, também apresenta uma organização real que destoa da organização prescrita, funcionando como um setor de cobrança. Assim como na assessoria do SCDP, o Setor de Cadastro tem suas atribuições regidas por diversas normas e regulamentos, entretanto, propositalmente, essas normas, muitas vezes, não são seguidas. Essa espécie de infração proposital tem como objetivo a concretização do processo de compra do objeto desejado pela Organização. Caso as normas fossem rigorosamente obedecidas e os prazos estabelecidos fossem seguidos pelos servidores, os fornecedores seriam punidos com sanções administrativas por não entregarem os objetos nos prazos estabelecidos e a organização não concretizaria o processo de compra do objeto, tendo que devolver o dinheiro orçado para a compra desse objeto ao Ministério da Educação por não ter sido utilizado no ano vigente.

Essa é uma situação convergente ao postulado por Dejours (2003) que afirma que, sejam quais forem as qualidades da organização do trabalho e da concepção, é impossível, nas situações comuns de trabalho, cumprir os objetivos da tarefa respeitando escrupulosamente as prescrições, as instruções e os procedimentos. Assim, constatou-se a exigência de uma atitude flexível da servidora, no intuito de dar andamento ao processo. Na verdade, se eles não o fizessem, se eles se limitassem à estrita execução das normas, o setor entraria em colapso.

Dessa forma, o ocorrido nesse setor também vai ao encontro dos ensinamentos de Dejours (2012), quando este afirma que os trabalhadores reajustam a prescrição, transformam as ordens, cometem infrações, trapaceiam nos procedimentos para tentar fazer bem o seu trabalho. Assim, diante dessas ações dos trabalhadores desse setor, percebemos o sofrimento dos servidores envolvidos nesse trabalho real, quando narraram sentimentos de angústia e constrangimentos na relação com os fornecedores e com servidores de outros setores.

O último ambiente de trabalho analisado em relação a discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho real evidenciou que a tarefa de elaboração das IRPs apresenta uma defasada prescrição do trabalho. Em contrapartida, toda execução do processo é condicionada por um sistema de tecnologia que determina as etapas e os prazos a serem cumpridos favorecendo a autonomia dos servidores. Esse mesmo sistema tecnológico se mostrou passível de falhas o que causou frustação e aborrecimento ao servidor. Portanto, ficou evidente a baixa prescrição do trabalho na elaboração da IRP e a forte influência da tecnologia na operação dessa ação, percebida pelos servidores como proteção contra as influências externas, principalmente, quando essas influências são exercidas pelos servidores docentes, trazendo transtorno na execução da tarefa.

Dessa forma, o trabalho prescrito pode ser visto como uma dimensão necessária ao direcionamento e à segurança do trabalhador na execução do trabalho. Assim, podemos verificar nesse estudo de campo os ensinamentos de Aguiar (2013), quando afirma que nenhum plano, programa ou conjunto de regulamentos pode plenamente prever o elemento crítico do ato produtivo bem-sucedido.

A condução do processo de pregão pelo Assistente em Administração 06 também, demonstrou intercorrências relacionadas à operacionalização das tarefas. Um achado interessante nessa análise foi o fato de o aprendizado da execução da tarefa de pregoeiro decorrer da cooperação dos outros pregoeiros e colegas de trabalho mais experientes. Esse achado vai ao encontro do que diz Seligmann-Silva (1994), ao afirmar que o servidor público aprende a realizar o serviço da forma que lhe é possível, pois existe pouco trabalho prescrito e, havendo, em sua maioria, é restrito ou desatualizado.

Portanto, constata-se nessas observações, que os servidores públicos desses setores, rotineiramente, necessitam mobilizar seus impulsos afetivos e cognitivos da inteligência para lidar com as situações não previstas no modo operatório das ações. Esses impulsos geram comportamentos que parecem estar amparados por experiências pregressas e reflexão, e são expressados com cinismo, dissimulação e banalização. Segundo Lancman e Uchida (2003), da mesma forma que uma palavra não pode ser reduzida a um sinal, pois pode encerrar múltiplos sentidos, o comportamento deve ser visto como sintoma, constituído de deslizes e de sobreposições de sentido.

Assim, trabalhar pode exigir uma transformação pessoal diante das dificuldades, e é a partir dessa ótica que iremos debater, no próximo capítulo, as estratégias empregadas pelos servidores dessa IFES para transformar os percalços causadores de mal-estar em fontes de vivências de prazer no trabalho.

5.

MOBILIZAÇÃO SUBJETIVA: UMA ESTRATÉGIA EM BUSCA DA