A análise do romance The ambassadors (1998), direcionada principalmente para o espaço literário e a focalização, possibilita realizar diversas constatações acerca da operação isolada e solidária de tais categorias narrativas.
Os estados de Massachusetts e Connecticut, que localizam as cidades estadunidenses ficcionais de Woollett e Milrose, respectivamente, não atuam no romance como pano de fundo acessório, mas sinalizam conotações extratextuais que demonstram o viés histórico e o juízo crítico latentes na obra artística, conforme apontam as considerações a respeito da fundação da Nova Inglaterra. Além de a investigação isolada da cidade de Boston, capital de Massachusetts, sugerir igualmente conjeturas de cunho extraliterário e interpretações de censura, indica uma possível homenagem ao autor compatriota de Henry James (1843-1916), Nathaniel Hawthorne (1804-1864).
A historicidade suscitada pelos espaços franceses, por sua vez, remete ao Primeiro Império e a uma ordem de elementos em extinção, em consonância com o percurso de um protagonista que renega um conjunto de concepções em favor da adoção de uma postura identitária legítima. É pertinente, por esse motivo, que a pousada francesa Cheval Blanc arremate seu processo de visão epifânico, cujo início e prosseguimento se devem ao espaço europeu.
À Inglaterra, representada no romance pelas cidades de Chester e Londres, cabe o papel de realizar a transição entre os referidos polos espaciais, que encerram duas modalidades de criação distintas e duas visões de mundo antitéticas. Assim, esse espaço constitui a fronteira romanesca, que predispõe o embaixador para transformações e experiências mais profundas de caráter filosófico. Esse deslocamento que alicerça o romance significa não somente a descoberta do exterior, mas se torna elemento imprescindível para o autoconhecimento de Lewis Lambert Strether.
Relativamente ao artifício da focalização, cabe ressaltar que essa categoria auxilia tanto a inferir a consciência condutora da instauração espacial e suas ambiguidades quanto a revelar os momentos em que cada entidade ficcional assume o papel ora de focalizador, ora de focalizado. Ademais, as locuções modalizantes, a dramatização da consciência do protagonista e as práticas do autor implícito na manipulação da informação narrativa, por exemplo, imprimem diversos efeitos de sentido ao romance, como a aproximação ou afastamento da mente de Strether, a inescrutabilidade das personagens e a analogia dessa narrativa heterodiegética com os romances autodiegéticos.
Ao investigar, dessa forma, a dependência mútua entre o espaço artístico e a focalização, é possível constatar que as cidades de Woollett, Milrose e Boston denotam para Strether e outras personagens os conceitos de cerceamento, moralidade, rigidez de princípios, malogro comunicativo e insucesso financeiro, por exemplo. Por sua vez, a focalização relacionada a Chester, Londres e à França revela a natureza dúbia e sub-reptícia do espaço europeu. Apesar de tais cidades sugerirem renovação, interação pessoal, doutrinas flexíveis e riqueza, é onde Strether também falha como embaixador e supostamente cai em uma armadilha ao ser seduzido pelos valores do Velho Mundo. Os espaços percorridos são como a areia movediça: inconstantes e nocivos, mas sedutores e atraentes.
O fracasso da missão do protagonista é o preço que paga conscientemente por adotar uma postura autêntica ao abdicar de sua função como embaixador da Sra. Newsome. A partir do momento em que Strether sugere que Chadwick Newsome permaneça em Paris, deixa de representar os interesses da matriarca da família, mantendo-se somente como representante ou embaixador dos próprios fatos narrativos.
No decorrer da análise destaca-se também de que forma o tema da representação é construído de três maneiras no romance: inicialmente, pelo enredo que descreve a função de Strether como embaixador da dama estadunidense; em segundo lugar, pela dramatização de sua consciência; e, finalmente, pelo título flexionado no plural, que encerra o conjunto dos papéis do protagonista, do narrador interferente e do autor implícito. Tendo em vista que o conceito de embaixador exprime a situação de um representante ou emissário ocupando o lugar de outra pessoa em um sítio alheio, o espaço, por isso, é imprescindível para que tais representações metafóricas sejam o fio condutor do romance.
Em resumo, The ambassadors (1998) é uma obra em sintonia tanto com as disposições morais, históricas e econômicas do final do século XIX quanto com as circunstâncias literárias do Realismo e Modernismo, rompendo nomenclaturas advindas de uma historiografia literária estanque. Nesse contexto, o romance de 1903 esboça uma estética em vias de consolidação e projeta o espaço e a focalização como sustentáculos da temática e da manipulação ambígua do texto literário.
Afinal, a análise do espaço literário e da focalização nesse romance jamesiano descortina um leque de possibilidades interpretativas irrestritas a este estudo. Tal multiplicidade se deve tanto à riqueza inerente dessa narrativa consagrada quanto ao caráter inesgotável da espacialidade literária, que porta diversas significações socioculturais, e da categoria narrativa da focalização, que faculta a manipulação original da matéria-prima narrativa.
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