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A imagem de Jesus Cristo manifesta-se em vários discursos ao longo dos séculos, a estabilizar as axiologias do discurso cristão secular, basilares no discurso religioso cristão, que são misturadas com as axiologias das culturas em que surgem os enunciados. As análises do segundo capítulo mostram que, em seu surgimento no Império Romano, a imagem de Cristo manifesta temas e figuras do discurso pagão romano, que são remanejados aos temas e figuras do cristianismo. A imagem de Cristo impõe-se gradativamente na cultura pagã romana até ser assimilada e, ao mesmo tempo, inserir a axiologia do discurso cristão na cultura romana. As imagens medievais de Cristo mostram o desenvolvimento dos conceitos de sagrado e profano como axiologias que opõem o que é da ordem espiritual (sagrado) ao que é da ordem material (profano). É no período medieval que se institui o discurso cristão como verdade na descrição do universo, o Cristo cósmico é considerado o criador de tudo que existe, a instaurar o discurso religioso da instituição igreja católica como o discurso de autoridade maior nos campos dos saberes.

Na pintura de Rafael, percebe-se a valorização da estética corporal na imagem de Cristo, pois no renascimento o pensamento filosófico humanista emerge como nova possibilidade de se compreender o universo, embora o discurso religioso cristão não seja negado. A pintura barroca de Rubens estrutura-se em uma concentração saturada dos elementos figurativos e plásticos dos temas e figuras do discurso cristão, que se manifestam em uma pintura que recupera traços desenvolvidos nas escolas artísticas anteriores. Na pintura indiana, que é um testemunho da popularização da imagem de Cristo para além da cultura ocidental, nota-se que a oposição entre os conceitos de sagrado e profano concretiza-se na homologação entre as categorias plásticas e semânticas do texto oriental, a indicar que a oposição entre sagrado e profano do discurso cristão ocidental é mantida em um discurso do oriente.

A pintura de W. Blake exalta o aspecto transcendental do Cristo crucificado, o discurso do autor é um dos primeiros a problematizar o discurso religioso secular, além de criticar também o discurso científico de sua época. A pintura A cruz nas montanhas mostra o esforço romântico de conciliar a subjetividade com a objetividade – que foram

separadas pelo discurso científico – na imagem do Cristo crucificado, em uma mistura entre o Cristo (sujeito) na cruz e a montanha (objeto).

As imagens analisadas no segundo capítulo são selecionadas porque manifestam a estabilização do discurso cristão ao longo de séculos de composição. São textos que revelam as transformações discursivas na imagem de Cristo ao manifestar as axiologias e os padrões estéticos de seus respectivos contextos de produção. A seleção e a análise dessas imagens foi feita com o apoio de estudos sobre a história e sobre a cultura do período em que foram produzidas, embora nenhum dos estudos empreenda análises detalhadas como as que esta tese se esforça em fazer.

O terceiro capítulo seleciona e analisa textos produzidos nos séculos XX e XXI, período em que a imagem de Cristo compõe discursos que remanejam o discurso cristão secular em novas práxis enunciativas. A pintura Golgota, de E. Munch, mostra o sofrimento de Cristo a impregnar-se na multidão ao pé da cruz, em um discurso que destaca o sofrimento a predominar no martírio de Cristo, sem indicações da possibilidade de salvação. O afresco de J. C. Orozco retrata um Cristo que se livra da cruz, a enunciar a sanção do percurso de Cristo no discurso cristão secular como disfórica e a instaurar um novo percurso, em que a sanção do percurso do Cristo que se liberta da cruz é eufórica. As pinturas de S. Dalí misturam o discurso cristão secular com o discurso científico desenvolvido na primeira metade do século XX, em composições que mostram a interpenetração entre o discurso religioso e o discurso científico.

A imagem de Cristo na capa do filme Jesus Christ Superstar é um registro do discurso da contracultura, que reinterpreta o papel de Cristo como mártir e o integra ao universo da cultura hippie. A pintura de H. R. Giger, que se torna a capa do disco To

Mega Therion, subverte o discurso cristão secular ao mostrar Cristo como um objeto

manipulado pelo demônio. As fotografias de D. LaChapelle reinterpretam imagens clássicas de Cristo ao relacioná-las com ícones da música popular contemporânea e com a cultura da arte de rua. O discurso cristão secular, em que a relação entre sagrado e profano é operada pela triagem, é remanejado enquanto a imagem de Cristo é assimilada em discursos contemporâneos, em que a relação entre sagrado e profano é operada pela mistura.

A semiótica é uma disciplina de vocação científica nas ciências humanas e, como tal, procura representar e analisar de maneira objetiva objetos que são subjetivos. Em alguns momentos, a tese discute o problema da relação entre subjetividade e objetividade e mostra que é uma relação polêmica, já que, como seres subjetivos, os homens têm dificuldade em criar um tipo de explicação puramente objetiva dos fenômenos. Subjetividade e objetividade são domínios que se entrecruzam sempre.

Essa relação intrínseca entre subjetividade e objetividade mostra a complexidade da cisão conceitual entre sujeito e objeto, que se desenvolve a partir do século XVII e que é problematizada, entre outros trabalhos, pela fenomenologia de M. Merleau-Ponty (1945), que, por sua vez, contribui para o desenvolvimento da semiótica tensiva e para a compreensão da enunciação como um processo sensorial. Ao pensar na inserção da teoria semiótica greimasiana no domínio dos saberes, parece que essa disciplina ocupa um lugar, nem sempre muito confortável, entre as ciências humanas e as ciências exatas. A epistemologia mostra que a ligação entre a semiótica e as ciências humanas, principalmente a linguística de base saussuriana, é mais clara do que sua ligação com as ciências exatas, embora a utilização de algoritmos em esquemas similares às funções algébricas aponte um vínculo com as ciências duras.

Um dos méritos da semiótica greimasiana é o modo como conceitua a relação entre subjetividade e objetividade, por meio de conceitos e esquemas que são desenvolvidos com base no princípio de que o pensamento objetivo (inteligível) está ligado ao domínio da subjetividade (sensível). É uma teoria que considera que o domínio subjetivo (sensível) e o domínio objetivo (inteligível) possuem uma ligação e que conceitua o vínculo entre esses domínios ao descrever a enunciação como processo sensorial, como foi visto no primeiro capítulo.

Outra grande contribuição da semiótica greimasiana é sua definição de texto, que não se prende aos juízos de valor segundo os quais se classificam certos discursos como “superiores” a outros. Isso ocorre, por exemplo, quando certos textos, como uma pintura ou um romance, adquirem estatuto diferenciado de obra de arte e são alçados a um patamar mais elevado em relação a outros textos. Para a semiótica, o discurso é uma estrutura em que se manifestam os níveis do percurso gerativo de sentido e que se materializa em textos como romances, poesias, tratados científicos, pinturas,

esculturas, diálogos cotidianos, filmes, etc. É o conceito de texto da semiótica que torna possível a análise dos vários tipos de textos selecionados nesta tese, já que uma disciplina que se fundamenta sobre juízos de valor não compreende a seleção de uma pintura (obra de arte clássica) e a de uma propaganda publicitária (texto comercial) em um mesmo trabalho.

A análise semiótica das mudanças e estabilizações da imagem de Cristo mostra que o tema e a figura de Cristo manifestam-se em discursos heterogêneos em culturas e em épocas distintas. A tese mostra que há elementos estáveis do discurso cristão secular, que se manifestam em estruturas semióticas e que são remanejados ao concretizar-se em discursos que atenuam temas e figuras do discurso cristão secular ao misturá-lo com temas e figuras do discurso da ciência (como é visto nas pinturas de S. Dalí), do estilo de vida hedonista (a propaganda da cachaça Sagatiba), da mitificação de celebridades e do misticismo alternativo das ruas (fotografias de D. LaChapelle).

É instigante examinar a presença marcante da imagem de Cristo ao longo da história e perceber que essa imagem entrecruza uma variedade de temas como transcendência espiritual, liberdade, opressão, sofrimento, beleza e hedonismo. Temas que, muitas vezes antagônicos, harmonizam-se nas diversas manifestações da imagem de Cristo. A maneira como essa imagem articula conceitos variados em sua manifestação, a inovar temas arcaicos e a inovar a si mesma, a torna singular.

Mitos, como Jesus Cristo, estabilizam-se nas estruturas discursivas, a perpetuar temas e figuras que o mito concentra em si e também a remanejar temas e figuras da cultura hospedeira em que o mito se manifesta. A sobrevivência da imagem de Cristo no curso da história está ligada às possibilidades de mudança que essa imagem apresenta para ser remanejada como um discurso novo, mas sem perder os elementos icônicos que a definem como um discurso estável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: