A reflexão proposta neste artigo buscou sistematizar alguns elementos que nos permitam construir ferramentas analíticas para a compreensão da realidade social que passamos a vivenciar no Brasil, em especial a de 2020, que é o aprofundamento das formas de reprodução da desigualdade social. Fernandes (2008) já identificava, na década de 1950, uma estrutura social brasileira extremamente desigual que associava um abismo entre classes e a manutenção de uma segregação racial. Saffioti (2015), também nos anos de 1950, reafirma essa ordem social hierárquica de classes, sendo esta articulada à permanência de uma divisão sexual binária
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da vida social. Carneiro (2015), nos anos 2000, observa ainda a constância desse entrecruzamento de matrizes de dominação que subalterniza grupos sociais e estabelece uma massa de pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Diante disso, posso afirmar que as crises geradas e gestadas pelo sistema-mundo capitalista/moderno/colonial/ heteropatriarcal, em especial no Brasil, são meios de manutenção da colonialidade, reproduzindo desigualdades interseccionais que se assentam no par privilégio/opressão. O agravamento do tecido social pela pandemia exige, primeiro, que continuemos a defender e estimular a realização das ações estatais de curto prazo, a qual possibilita condições mínimas de sobrevivência. Porém, é preciso também construir uma agenda de reflexão e discussão acerca de como enfrentaremos o agravamento do entrecruzamento das desigualdades sociais no Brasil. Nesse sentido, as Ciências Sociais têm um papel fundamental, desde construir ferramentas teórico-metodológicas até a proposição de políticas públicas.
Em um momento de ininterruptas práticas de (r)existência, em que as formas de produzir saberes e conhecimentos vêm sendo descreditadas pela (ir)racionalidade neoliberal, é essencial que se permaneça na construção de entendimentos acerca da realidade social. O giro decolonial a ser promovido pelas Ciências Sociais brasileira centra-se na produção do artesanato intelectual, defendido por Mills (1982) e que se desdobra em cinco momentos: i) a valorização das experiências e vivências subalternas, tanto individuais como coletivas, que propiciam inquietações, questionamentos e saberes; ii) o armazenamento e o debate de ideias e fatos, a partir de leituras e discussões com diferentes sujeitos; iii) a construção de problemas de pesquisas, ou seja, que indagações são pertinentes para desvelar certo fato da realidade social; iv) a imaginação sociológica, trazendo a problemática vivenciada para o campo da teoria social e o arsenal de conceitos e pensamentos que esta possui; e v) o trabalho científico, a elaboração da reflexão propriamente dita, que atualmente vem se apropriando de forma mais intensa das tecnologias de informação
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e comunicação (TICs), especialmente com a necessidade de uma permanência maior nos domicílios por conta da pandemia. Este último é ilustrado com o aumento da produção de podcasts, de ensaios científicos em outras plataformas além das revistas especializadas – aqui entra jornais, blogs –, de webinários que rompem com os limites do tempo e espaço.
Para o desenvolvimento de uma agenda que repense o Estado como meio de (r)existir à manutenção da ordem desigual, estabelecido o artesanato intelectual associado às TICs, deve-se ter como primeira estratégia a continuação e promoção da visibilidade das múltiplas formas de reprodução das desigualdades e da manutenção da colonialidade no Brasil, tendo a pandemia como contexto de análise. Torna-se importante e urgente evidenciar os mecanismos de fortalecimento, as experiências que são vivenciadas e as alternativas que têm se apresentado. Possibilita-se, assim, divulgar e expandir a produção científica em um contexto de forte negacionismo.
Outra estratégia é a construção/fortalecimento de espaços híbridos – tanto on-line como presenciais – voltados para o acom-panhamento específico dos impactos da pandemia na reprodução de desigualdades interseccionais. A reflexão e o debate são funda-mentais para se ampliar horizontes e entendimentos. A interdis-ciplinaridade, tão característica das Ciências Sociais, é primordial para agregar diálogos plurais que devem ir além do ambiente acadêmico. A presença de sujeitos dos mais variados setores da sociedade, articulando entre si ideias e projetos alternativos, é fundamental para a construção de políticas públicas.
O terceiro elemento é o engajamento e a ocupação de espaços que acessem o Estado. Se, por um lado, temos uma coalizão de governo que se pauta na racionalidade neoliberal e na manutenção da colonialidade, por outro, mantém-se uma democracia mínima que permite a participação popular e grupos de apoio dentro das instituições. A ativação da esfera estatal não é somente pelo voto, mas também pela ação política. As Ciências Sociais têm um papel fundamental, que é o estímulo do pensamento crítico a partir da
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realização de pequenos encontros de ideias, webinários, fóruns com a apresentação de diferentes argumentos e relatos que aprofunde ainda mais as trocas de conhecimentos, propiciando uma ecologia de saberes.
A agenda dentro desse tensionamento entre colonialidade/ decolonialidade, ainda em construção, pode aparentar trazer consigo formas usuais de estratégias que dispomos nas Ciências Sociais. Entretanto, o artesanato intelectual, idealizado por Mills (1982), necessita incessantemente ser ressaltado, pois esta forma plural de pensar criticamente estabelece-se nos termos das vivências, leituras, análises e trocas, possibilitando a produção e disseminação de saberes. O momento de crise extrema que vivenciamos, eclodido com a pandemia que assevera o par privilégio/opressão, exige dos cientistas sociais olhares atentos às experiências vividas e como estas, a partir do aparato teórico-metodológico, podem apontar alternativas e outras perspectivas.
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