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No processo inicial de construção desse estudo, ao estabelecermos diálogo conceitual com o filme The Wrestler (2008), fomos surpreendidos, de maneira positiva, com as possibilidades argumentativas e esclarecedoras de processos que até então não nos pareciam tão evidentes. Assim, a análise daquela obra de ficção (2008) e as possíveis relações com a vida real foram como combustível para o desenrolar das nossas ideias. Sempre atentos às devidas ponderações acerca da ficção e dos sujeitos/lutadores reais, desenvolvemos e problematizamos no campo de pesquisa aspectos entre as duas dimensões de análise que ora se aproximavam, ora se distanciavam. Essas peculiaridades parecem percorrer os estudos que se dedicam compreender o corpo na sociedade contemporânea. Nesse sentido, gradativamente, o potencial analítico apresentado por aquela fonte dentro do processo de construção desse trabalho, resultou no amadurecimento do nosso objeto de pesquisa e no desenvolvimento de todo o trabalho.

Nessa perspectiva, compreender as produções cinematográficas como fonte possibilitou perceber outras nuances do universo de pesquisa, como também, investigar aspectos que outrora não nos pareciam acessíveis. A partir disso, pudemos perceber questões relativas aos conflitos vividos pelo personagem da obra e, ao nos embrenharmos no campo em busca de respostas, foi possível relacionar aquelas análises às vidas de pessoas que construíram identidades em torno de performances corporais semelhantes.

Assim, no processo e desenvolvimento de nossas análises, pudemos perceber que o afastamento inevitável das competições, vivido por vários atletas profissionais e/ou amadores, é um acontecimento marcante na vida daqueles sujeitos; no entanto, mesmo com todas as chances de derrota ante a implacável deterioração da máquina de combate (máquina/homem), no caso dos lutadores, o mestre de si desenvolve estratégias para garantir parte de seu arsenal de combate frente à possibilidade de derrota identitária. Assim, seguem em suas batalhas individuais atentos às prerrogativas do treinamento, da alimentação saudável e, mesmo que alguns fujam a essa regra, mandamentos internalizados sobre quem é ou deve ser o lutador parecem proporcionar uma sensação de autodefesa diante das fragilidades dos próprios referenciais que lhe conferem status diferenciado. Isso tem a ver com a inexorável degradação corporal vivida por todos nós. No caso dos lutadores, podemos constatar que se trata de uma

luta consigo mesmo. Nesse sentido, o combate estabelecer-se-á numa luta de si para consigo na tentativa de perpetuação do eu-lutador.

Quando analisamos a importância atribuída ao corpo na sociedade contemporânea, desde suas apresentações nas ruas das cidades, nas páginas de revistas, nos programas televisivos, na internet, no cinema, nas produções científicas, ora é destacado como corpo esbelto, forte, bonito, potente, viril, etc.; ora como corpo repulsivo, fraco, desleixado, doente, decadente, velho etc. Essas antinomias são realçadas quando nos referimos a esse corpo emblema. Assim, como marca de um eu atento às necessidades e prerrogativas da moda, pode ser melhorado, atualizado, mediante práticas que o tornem apto a representar quem lhe apresenta tais demandas. Essa é uma constatação representativa dos aspectos bioidentitários presentes na cultura somática, como também, pode ser apreciada na obra cinematográfica utilizada como fonte de análise no capítulo três. Entre os lutadores da pesquisa também podemos identificar alguns desses aspectos. No processo de construção do verdadeiro lutador (não somente o que está na moda ou que vive das competições), aquele que tem a mente forte e que vive a doutrina do guerreiro contemporâneo, ele deverá vencer qualquer desafio para manter- se na identidade escolhida. Esse desafio, contra o desgaste inerente à nossa existência (corporal), é vivenciado como mais um adversário (talvez o mais poderoso). Uma batalha privada contra uma natureza que insiste enfraquecer o velho guerreiro.

No exercício ascético presente nas construções aqui apresentadas, potencializar o corpo e exibi-lo nos ringues gradativamente cede lugar à capacidade de mantê-lo em uso o quanto for possível (por toda a vida) e, segundo a perspectiva de um dos lutadores entrevistados, mesmo após a morte poderá ser lembrado por suas atuações, suas performances, seus feitos e conquistas. Obviamente, durante esse processo de diminuição da performance e o afastamento das competições, ainda é necessário potencializar o corpo; entretanto, gradativamente essa obrigação do ser lutador (potente e vitorioso nos ringues) é redefinida para que ele permaneça e suporte os sacrifícios inerentes a perpetuação do guerreiro.

Como sabemos por Wacquant, nas relações estabelecidas entre lutadores, o corpo é valorizado porque por meio dele se expressam as marcas exteriores da preparação instrumental do pugilista (WACQUANT, 1998). Nesse sentido, por exemplo, quando se fala de corpo entre os praticantes de jiu jítsu, não é apenas uma questão de estética da boa forma e da cultura da beleza que está em jogo, trata-se da aquisição de bens corporais-culturais (CECCHETO,

2004, p. 171), de bens simbólicos, valorizados e que justificam os esforços para sua aquisição e manutenção. Por isso, para permanecer na identidade escolhida os lutadores deverão continuar exercitando-se e lutando.

No processo de análises em que consideramos alguns aspectos realçados pela obra cinematográfica e os relatos no/do campo, podemos constatar que, além das normas vigentes sobre o corpo em forma, dos procedimentos que abarcam grande parte do imaginário social, no caso dos lutadores reais esses referenciais se entrelaçam e reforçam formas de reconhecimento já existentes; no entanto, sob novos códigos tencionam e demarcam posições sociais. Assim, a tentativa de eternizar a identidade de guerreiro é, além de tudo, uma tentativa de manter-se vivo como homem, de ainda representar o grupo, de carregar as marcas das batalhas, de ter uma história, de poder ensinar e ser valorizado por isso. Perceber esses aspectos significa atentarmos para outros valores atribuídos aos referenciais presentes na forja do lutador. Em uma sociedade em que os papéis sociais ganham novos tons com a maior participação das mulheres em ambientes outrora dominados por homens, com participação dos homens em atividades domésticas e na educação dos filhos, alguns referenciais que parecem perderem-se no tempo, são evocados e postos em cena para dar conta dos déficits identitários decorrentes dessas mudanças.

Nessa relação, a ideia de corpo (mesmo exercendo grande importância na manutenção do lutador), também pode ser redefinida e participar da manutenção do lutador a partir da experiência acumulada, com a sabedoria, com a história do lutador; nesse sentido, o lutador pode estabelecer um tipo de governo ético de si. O corpo envelhecido do lutador pode carregar e transmitir também a sua história, o seu passado e presente, as marcas, as estratégias, o ensino das habilidades aos aprendizes e prosseguir na vida sendo quem sempre foi... um verdadeiro lutador. É nesse sentido que a noção de pedagogia moral exercida na forja dos lutadores é indispensável e indissociável no entendimento de parte desse processo que sugere a fixação dos referenciais identitários relativos a um tipo de conduta honrada, respeitada, digna e que, ao mesmo tempo, dá suporte à sua perpetuação.

Essas argumentações acentuam a ideia de que o processo de formações de lutadores, iniciado desde as primeiras aproximações aos recintos destinados aos treinamentos dos pretendentes a tornarem-se homens de ferro, não se estabelecem apenas individualmente, mas segundo um trabalho intenso em que o sujeito é submetido às normas, aos valores e princípios morais que

se misturam à construção do corpo do lutador, útil para a luta/esporte e todas as características compartilhadas no/pelo grupo lhe conferem status diferenciado que podem levá-lo à condição de mestre. Nesses jogos de guerra, pudemos verificar que a vontade de ser quem se é (ou deseja ser) está em primeiro plano e impulsiona aqueles construtores de si a continuarem, a não medirem esforços para garantir seu reconhecimento, enquanto pertencentes a si e a um grupo (de indivíduos/lutadores), por vezes representantes de uma casta distinta, com suas regras e signos em que o êthos do lutador é demarcatório e justifica a tentativa de perpetuação da espécie.

No âmbito desse estudo, não foi possível identificar o processo caracterizado com aposentadoria de atletas vivenciado por vários esportistas profissionais. Mesmo considerando a representatividade do corpo na vida desses praticantes, o declínio performático e o afastamento das competições, não identificamos uma passagem de vida como lutador para ex- lutador. Diferente daqueles jogadores de futebol estudados por Guedes (1985), que abandonaram o sonho e tiveram suas carreiras frustradas, posteriormente identificaram-se com a rotina de outra possibilidade de vida, os lutadores desse estudo não deixarão de ser lutadores... “jamais”. O avanço da idade, o desgaste corporal, o declínio do rendimento que, a priori, parecem indicar o fim da carreira ou incentivaria os praticantes a procurarem outro modo de vida, não são suficientes para que isso aconteça. Os dados sugerem que os referenciais presentes na forja do lutador o impelem a continuar sendo lutador, e, no decorrer de sua trajetória de manutenção identitária, buscarão meios de perpetuar seu estilo de vida, seja na categoria profissional, amador ou como treinador/mestre. Um processo caracterizado pela vontade permanente de (re)construção se si do eu-lutador.

De maneira análoga podemos considerar esse trabalho como tentativa permanente de reconstrução de si do eu-lutador/pesquisador. Sob outro enfoque, a “experiência” aqui referenciada e vivida no processo de construção desse estudo se relaciona com um modo de saber inseparável do indivíduo concreto em quem encarna, com sua sensibilidade, sua “[...] forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética - um modo de conduzir-se - e uma estética - um estilo” (BONDÍA, 2002, p. 27). Nesses termos, a experiência vivida nesse processo de estudo articulada à história de vida do pesquisador se relaciona com sua formação, com novas possibilidades de entendimento da realidade, com a vida singular e concreta peculiar a quem vivencia sua experiência. É nessa direção que esse trabalho se estabelece, se constitui como processo de construção e apropriação de saber

permanente. A partir desse entendimento esse estudo nos possibilita refletir, ponderar e, ao mesmo tempo, apropriar-nos de nossa própria vida.

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