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O objetivo dessa tese foi cumprido, na medida em que identificamos e analisamos as fronteiras que dificultam a implantação e implementação das Farmácias Vivas no Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com os sentidos atribuídos pelos gestores de Farmácias Vivas.

Foi apresentado o projeto Farmácia Viva, idealizado pelo professor Francisco José de Abreu Matos da Universidade Federal do Ceará e instituído no SUS pela Portaria GM nº 886, de 20 de abril de 2010. Também foram identificadas as nove Farmácias Vivas incluídas nesta pesquisa, trazendo uma breve descrição sobre cada uma delas, sendo, três Farmácias Vivas localizadas em Fortaleza/CE e as demais nos municípios de Maracanaú/CE, Betim/MG, Sorocaba/SP, Jardinópolis/SP, Toledo/PR, e Riacho Fundo/ DF.

Observou-se uma grande diversidade em relação aos modelos de Farmácias Vivas, plantas, medicamentos fitoterápicos disponibilizados e a equipe de cada Farmácia Viva. Neste capítulo foi abordado também a questão da falta de um cadastro nacional atualizado das Farmácias Vivas, já que o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde está incompleto.

Também se desenvolveu a discussão de que as plantas medicinais são objetos de fronteira, pois co-habitam diferentes mundos, fazendo com que comuniquem diferentes matrizes de conhecimento sobre as plantas medicinais. Por ser um objeto de fronteira, a fitoterapia tem o potencial de gerar novos saberes híbridos, enriquecendo os saberes em contato. No entanto, este objeto de fronteira não conseguiu problematizar a hegemonia da biomedicina e da ciência para fazer emergir os novos saberes híbridos, pois, boa parte do conhecimento popular tradicional e místico-energético das plantas medicinais está ausente nas Farmácias Vivas especificamente, e no SUS em geral. Mas é importante ressaltar que as plantas medicinais como objetos de fronteira não têm o poder intrínseco de realizar estes compartilhamentos, trocas e gerar esta tensão na fronteira, porque quem realiza este enfrentamento são os profissionais que trabalham com as plantas medicinais.

Investigou-se como os coordenadores das Farmácias Vivas compreendem e preparam-se para esse enfrentamento dentro do SUS. A partir de seus discursos foi possível identificá-los como trabalhadores e cruzadores de fronteiras. Identificamos que eles têm como missão promover as trocas nas fronteiras, podendo gerar assim,

transformações ou simplesmente reproduzir os modelos vigentes. Assim, apesar da fitoterapia ser um objeto de fronteira que possibilita o compartilhamento de saberes, e deles atuarem como trabalhadores de fronteira, suas ações não conseguiram promover uma ampla implantação da Farmácia Viva no SUS. Além disso, em relação ao aspecto relativo aos distintos saberes associados às plantas medicinais, os coordenadores explicitaram pontos de vista que operam reforçando a hegemonia científica e biomédica.

Os discursos dos entrevistados foram analisados tematicamente e identificados como fronteiras epistemológicas, cognitivas, sociais, organizacionais, profissionais e de autoridade. Para os coordenadores estes são aspectos que, de diferentes maneiras, dificultam a implantação e implementação da Farmácia Viva e mantém e reforçam a hegemonia biomédica e científica.

Evidenciamos que os sentidos atribuídos pelos gestores às dificuldades para implantação e implementação da Farmácia Viva tem relação com as condições políticas, financeiras, legais e legítimas das plantas medicinais. Pudemos perceber que as fronteiras organizacionais da biomedicina foram redesenhadas, possibilitando a inclusão das plantas medicinais em instituições médicas. Entretanto, esta abertura tem sido realizada através de processos de domesticação, que geram um empobrecimento do potencial terapêutico das plantas medicinais, reduzindo-as à ação química e quantificável. Portanto, longe de ser uma integração pela valorização das plantas medicinais a sua presença no campo biomédico pode ser vista como uma retórica à pressão da sociedade pelas plantas medicinais, logo, sem a força de uma prática transformadora que coloque as plantas medicinais no centro do modelo de cuidado.

Como se trata mais de um discurso de mudança com práticas de pequenas reformas apenas, ao mesmo tempo em que se alargou as fronteiras organizacionais, mantiveram-se praticamente intactas as fronteiras epistemológicas, cognitivas, sociais, profissionais e de autoridade, que suportam a hegemonia da biomedicina. Foi observado que algumas vezes até mesmo os coordenadores das Farmácias Vivas, que honestamente defendem uma maior presença das plantas medicinais no sistema de saúde, reforçam a supremacia científica por meio da reprodução de naturalizações não problematizadas. Por exemplo, quando reafirmam as fronteiras epistemológicas com a crença de que apenas o conhecimento científico, quantificável e realizado em laboratório é verdadeiro, em detrimento dos conhecimentos populares, tradicionais e

místico-energético das plantas medicinais, ou ainda, com a crença de que estes conhecimentos devem ser validados pela ciência, de forma que não reconhecem o seu valor próprio, mas apenas a sua dimensão de matéria prima.

Foi identificado ainda o controle dos sujeitos que trabalham com conhecimentos populares, tradicionais e místico-energético das plantas medicinais. Uma expressão desse controle é a associação dos profissionais não biomédicos com as identidades de charlatães, ignorantes e até mesmo perigosos. Os entrevistados reproduziram, inadvertidamente, prerrogativas de autoridade aos médicos, confirmando a sua exclusividade para prescrição das plantas medicinais e fitoterápicos, mesmo sabendo que os médicos são os profissionais com pior formação no campo das plantas medicinais e grandes porta vozes da biomedicina e indústria farmacêutica. Por outro lado, os coordenadores das Farmácias Vivas são bastante cientes da estrutura política, econômica e legal, que mantém esta autoridade da biomedicina e atribui baixo apoio político e financeiro para o desenvolvimento da Farmácia Viva.

Assim, com a ação coordenada de todas as fronteiras, o Projeto Farmácia Viva permanece invisibilizado no SUS, apesar de todo seu potencial de contribuição social, terapêutica e ambiental. Este trabalho procurou contribuir para o reconhecimento da validade dos diferentes saberes não hegemônicos das plantas medicinais. Também, intencionou problematizar as ausências e marginalizações infligidas às Farmácias Vivas, além de buscar produzir evidências de que as diferentes fronteiras que dificultam a implantação e implementação das Farmácias Vivas no SUS são construções sociais, portanto não naturais, que objetivam manter a hegemonia da ciência e da biomedicina. Por fim, esta tese reafirmou a importância de interrogar os saberes ausentes e emergentes para apoiar o desenvolvimento do modelo de cuidado integrativo.