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Considerações Finais

No documento A toxicodependência como processos sociais (páginas 33-36)

Capítulo 1. Identidade e Modernidade Tardia

1.8 Considerações Finais

Findo o primeiro capítulo podemos aferir que as mudanças que as sociedades acarretaram nas últimas décadas desencadearam uma série de alterações que teve efeitos nos indivíduos e inevitavelmente nas instituições. Essas alterações trouxeram consequências a nível familiar, social, politico, económico, mas também a nível individual.

Deste modo, não falamos mais de sociedades tradicionais caracterizadas como tendo uma solidariedade de tipo mecânica, baseada na proximidade e cooperação de todos os indivíduos, para passarmos a descrever a realidade actual, em que prevalece um tipo de solidariedade orgânica em que as relações são cada vez mais distantes, mais frias, e mais individualistas. Falamos pois da sociedade moderna globalizada.

Com a passagem das sociedades tradicionais para as modernas surge um novo conceito que é o de Risco, na medida em que as mudanças não dependem dos indivíduos, mas é o próprio ritmo da sociedade que as cria. O mundo apresenta-se repleto de riscos e perigos que afectam os indivíduos em todos os níveis da sua existência, atingindo mesmo a sua auto- identidade e os sentimentos pessoais.

Como foi referido ao longo deste capítulo, o ponto que as sociedades atingiram foi resultado, em grande medida, do processo de globalização. A introdução do capitalismo trouxe consequências notáveis operando uma revolução das forças produtivas e a racionalização dos processos difundindo em todas as esferas de actividade uma nova lógica de pensamento e acção.

É nesta medida que o mercado de trabalho passou a ser apresentado de forma diferente. Os trabalhos duradouros e seguros deram lugar aos trabalhos em part-time e a curto prazo. O desenvolvimento das novas tecnologias acabou com muitos postos de trabalho, na medida em que as máquinas passaram a substituir o trabalho manual. Este processo tem aspectos negativos porque diminui o número de postos de trabalho e o acesso ao mesmo, mas analisado numa vertente de projecção para o mercado é positivo porque fomenta a competitividade e o desenvolvimento económico.

Tal como já foi referido, o acesso ao mercado de trabalho passou a ser cada vez mais difícil, principalmente para as pessoas com baixos níveis de formação. Nas sociedades modernas, o acesso à escola é visto como um bem essencial e o número de pessoas que ingressa no ensino superior é cada vez maior, dadas as facilidades que foram sendo criadas, tais como a concessão de bolsas de estudo para os mais carenciados. Cada vez mais as

pessoas se preocupam em estudar, evoluir, acompanhar as mudanças para terem mais hipóteses de ter um posto de trabalho. O reverso da medalha é que o mercado está completamente saturado, e torna-se cada vez mais complicado oferecer lugares para todos. E, se já é difícil para os que têm uma formação obter um curso superior podemos imaginar o que sucede com os que não tiveram hipóteses de o conseguir. Essa situação agrava-se para os indivíduos que têm cadastro no seu currículo, como é o caso dos toxicodependentes, porque as portas que se abrem são muito poucas.

Como referia Bauman, infelizmente as novas tecnologias não causam grande impacto na vida dos pobres espalhados por todo o mundo e é nessa medida que a globalização é um paradoxo, porque beneficia uma parte da população, mas deixa de fora a maioria.

No caso dos toxicodependentes, e recorrendo novamente às premissas de Bauman, o capitalismo flexível tem “heróis” e tem “vítimas”. Os heróis são os que conseguem realizar os seus sonhos, as suas necessidades e adquirir o nível de vida que desejaram. As Vítimas são todos os que aceitam o que lhes é dado, como por exemplo qualquer emprego, desde que com isso consigam ganhar dinheiro.

Esta realidade acarreta inevitavelmente consequências negativas para os indivíduos, quer em termos políticos, culturais e sobretudo psicológicos. Muitas das vezes, as pessoas preverem isolar-se e criar as suas próprias barreiras para com a restante sociedade. Há como que uma revolta pelos valores, normas e modelos impostos pelos que detém o poder, o que faz com que uma franja da sociedade não queira estar incluída. Falo por exemplo dos toxicodependentes que, em muitos casos, preferem afastar-se e criar o seu próprio grupo, o qual na maior parte das vezes também consome drogas, e no seu seio criam as suas próprias normas e formas de viver. Este processo de aculturação faz com que os indivíduos se sintam menos discriminados pela restante sociedade e usufruam de momentos de alegria e prazer com indivíduos que têm a mesma maneira de ver a vida.

As mutações na sociedade, como já foi referido, afectaram também toda uma estrutura familiar. Assistiu-se, nas palavras de Dubar, a um desfasamento entre a evolução das normas, a diversidade dos modos de vida, a experimentação de novas relações amorosas, as aspirações à igualdade entre os sexos por um lado e a rigidez das formas sociais de divisão do trabalho, na família e na empresa, a persistência das formas comunitárias de dominação dos homens sobre as mulheres, na esfera económica por um lado, e no campo político por outro.

Perante novos quadros familiares, deixou de se poder falar em famílias estáveis, pelo contrário, o modelo de família tradicional entrou em crise.

Doravante estas alterações afectam todos, embora em proporções diferentes. O facto de o casal estar cada vez mais activo no campo profissional tem como consequência a escassez de tempo para tratar dos assuntos relacionados com a família. Os filhos estão cada vez mais ligados às actividades pós-escolares, quer sejam desportivas ou culturais, e para os que não têm acesso a esse tipo de actividades, quando chegam da escola permanecem pelas ruas, até os pais chegarem dos empregos. Assim há cada vez menos tempo para o diálogo e as pessoas são cada vez mais individualistas no seio da família. Esse individualismo pode levar em alguns casos a um forte apego ao grupo de pares, de modo a compensar a ausência de afecto a nível familiar.

Segundo vários estudos levados a cabo até aos dias de hoje, muitos indivíduos iniciam o consumo de estupefacientes devido a problemas a nível familiar, como sejam a falta de diálogo ou o desentendimento e incompatibilidades entre as pessoas, que origina o desapego entre as mesmas; a morte de um dos progenitores; o divórcio.

Há situações até em que os indivíduos, depois de iniciarem o consumo, decidem sair de casa, porque não querem ter contacto com a família de origem.

Também a escola, como uma das principais instituições de socialização pode ser fonte de crises para indivíduos, na medida em que, por exemplo, através do insucesso escolar sentem que não estão a corresponder às expectativas neles depositadas e entram em crise.

É também na escola, ao tomar contacto com uma multiplicidade de indivíduos, com diferentes modelos de referência, de valores, formas de estar e viver, que alguns adolescentes começam a pôr em causa a sua identidade entrando em crise, porque querem pertencer a outros grupos com princípios diferentes do seu. Este processo passa por uma crise inicial da própria identidade, para de seguida, em alguns casos anular a identidade inicial. Este processo de aculturação com o novo grupo pode originar a prática de hábitos, como seja o consumo de drogas, de álcool, adoptar um novo visual através da mudança da forma de vestir, de se pentear, etc.

Relativamente a este último ponto é importante referir que o processo de modernização criou um modelo de corpos e de estilos que principalmente os adolescentes querem imitar, de modo a serem socialmente aceites. A vergonha do corpo, o sentir que não se assemelham ao que gostariam de ser pode trazer graves consequências nos indivíduos e levá-los mesmo ao isolamento, ou então a optar por medidas mais radicais, como seja a anorexia ou o consumo de drogas, mas sempre com um objectivo único, que é o serem iguais ao modelo único patente na sociedade.

Apercebemo-nos, perante a análise dos factores supramencionados que o início do consumo de drogas pode ter causas múltiplas. Em suma, a modernidade tardia, unindo de forma inextrincável o individual ao institucional e ao societal favorece certas dimensões que potenciam o despoletar de uma carreira de toxicodependência. A nível familiar verifica-se que o divórcio e a eventual reconstituição familiar despoleta no indivíduo fragilidades, assim como revolta com a situação vivida. Em termos escolares o insucesso, assim como a distância face às culturas e identidades de origem criam no indivíduo uma barreira que os impede de ter o percurso considerado normal. O mercado de trabalho revela-se também um factor de instabilidade, dada a crescente flexibilidade, e precariedade em termos laborai. No que diz respeito aos próprios indivíduos, a sociedade exige que cada agente seja mais autónomo, quer em termos pessoais, quer em termos sociais, sem que no entanto crie condições para que cada um desenvolva a sua identidade própria, e se sinta bem consigo mesmo, e nas inter-relações com a restante sociedade.

No documento A toxicodependência como processos sociais (páginas 33-36)

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