O
s resultados descritos neste livro podem clarear o papel da História na formação da identidade do povo nordestino e dos estereótipos criados para defini-lo por brasileiros de outras re- giões. Ensejam também melhor compreensão da influência dos en- cadeamentos de ideologia e poder nas formações discursivas e nas posições de sujeito em ambiente de quase-interação mediada, além de um olhar midiático sobre a polifonia nos moldes bakhtinianos.O caráter interdisciplinar da estrutura teórico-metodológica foi essencial na verificação dos pressupostos e no preenchimento das questões de pesquisa. Conhecimentos específicos do campo da Comunicação Social, a exemplo dos estudos de agenda-setting, ampliaram as possibilidades da Análise do Discurso Francesa, do ramo da Linguística Aplicada, favorecendo o exame do corpus constituído por reportagens do jornal Folha de S. Paulo.
A investigação, respaldada por doutrinas de ambos os seg- mentos, demonstra que agendamento é realmente via de mão du- pla. Se por um lado a mídia estimula o debate público, divulgan- do tópicos enquadrados, por outro é a sociedade quem fornece assuntos e fontes para a composição do repertório jornalístico. Em 2005, tais subsídios não surgiram apenas no Nordeste. O Rio Grande do Sul, vivenciando uma rara estiagem, somou-se ao coro de “vozes da seca”.
Os argumentos fornecidos tanto pelo Nordeste quanto pelo Sul em relação à estiagem e aos problemas dela provenientes fo- ram ressignificados dentro de uma construção histórica. O crité- rio noticioso do “ineditismo”, revelado em dizeres do tipo “Seca
faz Rio Grande do Sul virar Nordeste”, é por si uma referência ao passado, muito mais se a informação original acerca de ocorrên- cia contemporânea aparece eivada por chavões produzidos e repe- tidos ao longo dos anos.
Em linhas gerais, o Nordeste da Folha de S. Paulo é ambiente ecológica e culturalmente homogêneo, sem haver sequer as clássi- cas distinções entre o litoral e o sertão, oprimido nas fronteiras do atraso, da fome, da miséria, da ignorância, contraposto ao Sul do progresso, das riquezas e das possibilidades. O Nordeste que dá cer- to, segundo o jornal, é o Nordeste produtor de soja dos gaúchos; e o Sul que dá errado é o Sul com “cenário seco do sertão nordestino”.
Esse ponto de vista não surgiu do nada. A observação indi- ca que ele é a soma de discursos emergentes na superfície textual, de modo explícito ou implícito, eivados por cargas ideológicas en- gendradas no interdiscurso, na associação do fato a conhecimentos antecedentes. O texto jornalístico é, por assim dizer, porção turva sob a qual ideologias diversas, de atores em posições distintas, inte- ragem e reproduzem sentidos em face da historicidade do presente. As reflexões pertinentes à formação e à materialização da ideologia no percurso entre o inter e o intradiscurso levaram-nos também a perceber uma espécie de ausência ideologicamente ati- va. São “entidades” alheias ao fato e às personagens da notícia, mas que produzem efeitos de sentido sobre toda e qualquer matéria. Citem-se, para exemplificar, os códigos de ética da comunicação, o etos profissional e as normas ideológico-editoriais das empresas.
Assim como a ideologia surge dos encadeamentos interdis- cursivos e funciona em tramas de significação, o poder observado no discurso da imprensa em relação à seca no Nordeste manifes- tou-se em complexas teias fiadas nas relações sociais. O Quarto Poder não é foro monolítico, absoluto na imposição da força, é sim uma instância por onde transitam poderes particulares de segmentos e indivíduos, formando relações várias, desde o acor- do ao desacordo.
As vozes dos que se aproximam ou se repelem na esfera do Quarto Poder serão polifônicas se suas respectivas competências ideológicas forem mantidas quando transportadas para o bojo da matéria. Pouco importa se aparecem entre aspas ou no discurso indireto. Necessário é cada sujeito permanecer independente, se- nhor das próprias ideias. Manipulada para servir aos caprichos do autor, a enunciação da personagem torna-se monológica.
A distinção entre os discursos percebidos em cada fragmento do corpus, avaliados a partir da autonomia do sujeito em termos polifônicos ou monológicos, mostrou-se importante no fechamen- to das análises. De um lado, ajudou a desnudar estratégias de ideo- logia e poder mascaradas na técnica jornalística. De outro, fornece argumentos para se questionar o comportamento do repórter em relação à fonte, ao leitor e ao exercício ético da profissão.
Chegamos até aqui apoiados na inteligência daqueles que se dignaram a nos conduzir na fascinante – e nem por isso suave – estrada do conhecimento, sem a ilusão de esgotarmos a temáti- ca trazida. Esperamos, no entanto, que a comunidade acadêmica
veja nos frutos desse esforço uma contribuição aos estudos que problematizam as práticas da linguagem incidindo sobre o discur- so da mídia no processo de construção de sentidos.
É importante lembrar que respostas definitivas não cabem no fazer científico, especialmente nas ciências humanas, onde as descobertas significam em contextos fixados no tempo e no es- paço, ao sabor das transformações sociais. Do contrário, restaria ao pesquisador cruzar os braços, dominado pela terrível sensação de que não há mais nada a ser perseguido, pois os enigmas estão decifrados e o homem perdeu a determinação para interferir na própria realidade.
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