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O que significa a passagem do regime estético da representação para o regime estético da simulação? Essa questão, colocada na introdução, foi desenvolvida ao longo da tese, por meio das análises interpretativas de obras que operam no campo da simulação, isto é, em um sistema marcado por um intenso conflito de imagens híbridas e tendências sociais que podem ser compreendidas através de uma atualização dos seguintes termos benjaminianos: a estetização da política e a politização da arte.

A breve rememoração que realizamos na introdução forneceu indicações sobre as reverberações sociais da emergência e consolidação das imagens técnicas. Como foi abordado anteriormente, a mimese deu lugar a impressões do real, que foram intensificadas à medida que as imagens pareciam denotar uma relação cada vez mais direta com os referentes. Em suma, a fotografia, o cinema e o vídeo auxiliaram na formação de uma percepção que vê nas imagens algo correspondente com a realidade, em certo sentido, até mesmo hiper-real.

No final do século XX, essa impressão de realidade relacionada com a aderência do referente na imagem foi completamente modificada pelo aparecimento das imagens de síntese. Isso porque elas resultam de uma nova forma de criação, fundamentada em modelos matemáticos, ao invés da reprodução das aparências por um processo de captação da luz. Nesse sentido, elas podem ser compreendidas como expressões máximas do pensamento técnico- racional. Por constituírem-se independentemente da relação de semelhança com o mundo, em termos visuais, as imagens de síntese possibilitam o surgimento do regime estético da simulação, isto é, uma nova ordem das imagens fundamentada pela sua autogeração por meio de processos de abstração científica, tais como cálculos e algoritmos.

O caráter técnico de ambos os regimes explica parte das mudanças operadas de uma ordem imagética para a outra, mas não dá conta da complexidade resultante na esfera social. A partir do momento em que todas as imagens passam para o campo do digital em um processo de intensa hibridação (como mostra Couchot), a diferença dos modos de concepção das imagens entre o regime da representação e o regime da simulação torna-se irrelevante. É por isso que remetemos ao pensamento de Benjamin, Adorno, Virilio, Deleuze, Baudrillard, Perniola, Sontag, Flusser e Crary em nossa introdução. Esses autores articulam a emergência das imagens técnicas com a propagação de determinados modos de vida e notam que a repercussão dessas imagens na esfera social tem relação direta com os estágios do capitalismo, uma vez que os desenvolvimentos implicados nas novas imagens também se vinculam aos modos de produção e circulação de bens e serviços, através de estratégias de marketing.

Esse breve panorama nos auxiliou na caracterização de um conflito de imagens relevante no início do século XXI. Esse conflito é especialmente marcado pela relação entre a propagação de imagens técnicas que visam neutralizar a percepção (simulacro, clichê) e tentativas de resistir a essa tendência, encontradas, por exemplo, nas artes. Nesse contexto, destacamos as poéticas tecnológicas e propomos analisar a obra de três artistas que pensamos oferecer modos distintos de afetar o espectador, por meio da superfície das imagens, em uma tentativa de ampliar seu pensamento crítico, ao invés de circunscrevê-lo.

Para nossa análise das poéticas tecnológicas de Harun Farocki, Bill Viola e Anthony McCall consideramos, especialmente, duas considerações flusserianas e uma deleuziana.

A primeira proposta flusseriana concerne ao artista, que deve jogar com os aparelhos, subvertendo continuamente suas regras. Isso não implica necessariamente a exposição e transformação da tecnologia subjacente, mas a produção de imagens inesperadas no funcionamento usual dos aparelhos aos quais se vinculam. Os espectadores dificilmente compreendem os pormenores técnicos que fundamentam as imagens, e esse entendimento não é determinante na sua fruição. Por isso, o desafio seria justamente usar os aparelhos para constituir superfícies que inquietam, de modo contrário às suas operações prováveis (articuladas com a tendência de estetização da política).

A segunda observação de Flusser utilizada na tese refere-se à tarefa do crítico. Buscamos desenvolver uma interpretação à luz dessa tarefa, isto é, o deciframento das imagens em relação aos aparelhos nos quais são concebidas. Isso significa que nossa tese buscou a compreensão dos aspectos simbólicos, técnicos, estéticos e políticos envolvidos nas obras analisadas, para caracterizar imagens de tempo respectivas, as quais possuem uma dimensão política resistente ao regime do simulacro.

É nesse sentido que Deleuze contribui com os conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo. O primeiro tipo de imagem corresponde ao regime do simulacro e o segundo, às possibilidades de resistência contra sua hegemonia. Ao longo de nossas análises, buscamos verificar as operações poéticas, especialmente em sua qualidade temporal. Essa escolha deveu-se ao entendimento de que é preciso investigar possibilidades de afetar os espectadores na superfície das imagens. Os artistas presentes na tese nos oferecem caminhos diferentes para a verificação dessa ideia, os quais foram explorados nos capítulos, na caracterização de modalidades de imagens de tempo.

Ressaltamos nossa busca por desenvolver uma metodologia de análise que inicia com a descrição das obras e é formulada por análises interpretativas, as quais utilizam o pensamento de determinados autores como auxílio para o entendimento das questões suscitadas pelas obras.

Essa escolha deve-se à compreensão de que a teoria da arte deve servir primordialmente de suporte para a interpretação dos objetos, não de fundamentação para a qual os objetos operariam como ilustração. Isso não significa renegar a investigação teórica ou colocá-la em um lugar de menor importância, pelo contrário, implica valorizá-la em sua relação com as obras. Nosso papel configura-se, assim, como mediador entre a prática e a teoria. Quer dizer, atuamos na descrição, análise e interpretação das operações poéticas efetuadas pelos artistas, com o auxílio de autores que permitem um aprofundamento das questões evocadas por meio das obras. É por isso que, em nossa pesquisa, a inserção dos artistas em determinadas tradições torna-se menos importante. Trata-se de uma tentativa de abordar aspectos das imagens de modo mais abrangente e interdisciplinar, tendo em vista a complexidade do conflito das imagens que se configura no início do século XXI.

É, portanto, através desse modo de análise que buscamos caracterizar as imagens de tempo respectivas às poéticas dos artistas selecionados. Como vimos, as imagens de tempo da restituição provocam a conscientização acerca dos diversos aparelhos que agem no controle e vigilância dos indivíduos. Esses aparelhos estão espalhados, vinculados a produtos audiovisuais, nas esferas do cinema, propaganda e marketing. As obras de Farocki nos convidam a verificar como as imagens técnicas articulam modos de controle e vigilância, instigando o pensamento e, ao mesmo tempo, desafiando-nos com relação à nossa própria impotência de pensar.

Em uma linha completamente distinta, as imagens de tempo do nada nos interpelam diante da finitude. Tendo isso em vista, as obras de Viola evocam a angústia que nos predispõe à consideração sobre o nada. Ao mostrarem as passagens do tempo através do alargamento do instante, elas possibilitam a transfiguração do nada como pura negação em afirmação da vida. Deste modo, instigam-nos a repensar os encaminhamentos prováveis de nossa existência.

Por sua vez, as imagens de tempo da presença em McCall demandam-nos um comparecimento completo, em nossos aspectos conscientes e inconscientes, em sua recepção. A fruição gerada pelos filmes de luz sólida tende a ressaltar um estado, ao mesmo tempo, atento e distraído, que oscila entre a ilusão e a conscientização. Em certo sentido, é como se a poética de McCall colaborasse no resgate de nossa corporeidade.

Com essas análises, tentamos mostrar diferentes modos de ampliar a percepção, a partir da criação de imagens de tempo que rompem com os clichês, reforçados pelos prolongamentos sensórios-motores contidos em produtos da indústria cultural. É deste modo que as dimensões políticas das obras de Farocki, Viola e McCall se constituem emancipatórias. Em todos os casos, os artistas operam no regime da simulação, pois não se trata mais da relação de semelhança com o mundo, mas em modos de movimentar o corpo sensório-cognitivo de cada

um para suscitar um envolvimento mais ativo conosco e com o mundo, tirando-nos de um estado amortecido ao qual os estímulos monótonos do simulacro induzem. Isso não significa, por exemplo, que a imagem óptica foi abolida, mas que a questão reside em como sensibiliza o espectador.

Em síntese, a passagem do regime estético da representação para o regime estético da simulação implica mudanças técnicas que, por um lado, rompem com o paradigma óptico, mas, por outro, amplificam o conflito de imagens que já se delineava no século XX com a fotografia, o cinema e o vídeo. É isto que significa primordialmente a passagem entre esses regimes: a transformação de todas as imagens em digitais, aprofundando uma tensão entre modos de fruição e tendências que ora buscam a padronização da percepção, ora resistem a essa inclinação, propiciando a conscientização do espectador diante de seus limites e possibilidades de atuação em relação aos diversos aparelhos existentes. Nesse contexto, o domínio dos aspectos técnicos dos aparelhos deve ser traduzido em imagens, quer dizer, superfícies que transbordam das telas e atingem o espectador na integridade de seu corpo sensório-cognitivo.