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Foi possível perceber ao longo desse trabalho que oferecer um cuidado integral para a população em situação de rua ainda é um desafio. Os rótulos e estigmas destinados a essa população precisam ser continuamente ressignificados, para que o preconceito e exclusão não sejam a tônica imprimida à essa parcela populacional. É importante tenhamos a clareza para enxergar todo o processo de vulnerabilização a que esses sujeitos foram sendo submetidos ao longo de séculos da nossa história, e que romper com essa realidade não será tarefa das mais fáceis.

O dispositivo Consultório na Rua surgiu como a proposta de preencher a lacuna de serviços de saúde que, apesar de estarem pautados num cuidado universal e equânime, não garantiam o acesso, a inclusão e o cuidado adequados às pessoas em situação de rua. No entanto, é preciso que se esteja atento para que esse dispositivo, que a princípio é norteado pelo conceito de equidade, não torne-se um equipamento especifico e especializado de saúde, que contribua para a lógica de exclusão e da segregação. Não podemos perder o foco de que o Consultório na Rua é um dispositivo da atenção primária à saúde, devendo ser pautados pelos seus princípios e diretrizes. Esse olhar responsabiliza também as demais equipes de atenção primária na coordenação do cuidado à essa população.

Importante pontuar que a coleta de dados dessa pesquisa só foi possível graças à um processo de trabalho da eCnaR Jacarezinho que inclui o cadastramento e preenchimento das informações dos usuários atendidos como uma de suas normativas. Foi possível obter diversas informações tanto de cadastro como de atendimentos, o que possibilitou tamanha riqueza de dados. No entanto, a não obrigatoriedade do preenchimento de dados básicos para a realização do cadastro, como CPF ou cartão SUS pode ter gerado um subregistro dessas informações, o que pode reduzir a mobilização da equipe na garantia do direito a essa documentação, por exemplo.

Foi possível perceber também, que boa parte da potência de trabalho da eCnaR Jacarezinho envolve uma tecnologia leve e relacional de cuidado, associada aos preceitos e protocolos norteadores da Atenção Básica. Acolhimento, escuta qualificada, vínculo, trabalho em equipe são ferramentas primordiais nesse cuidado; ferramentas essas que a equipe maneja com bastante habilidade. É provável que essa expertise seja responsável pelo sucesso da equipe na condução dos casos mais complexos que envolvem a população em situação de rua. Importante salientar também que a lógica do matriciamento tem gerado a quebra de diversos paradigmas

institucionais, em especial nos equipamentos da AP 3.2. A rica rede de serviços de saúde dessa área, e o incentivo ao trabalho integrado, com reuniões intersetoriais de Territórios Integrados de Atenção à Saúde (TEIAS), são peças chaves para que a rede de atenção à saúde funcione de forma mais fluida, buscando a garantia desse cuidado integral.

O investimento no cuidado em saúde mental na atenção básica, na perspectiva da redução de danos também mostrou-se uma peça chave na condução do cuidado a essa população específica. Esse é um ponto que merece um importante destaque, uma vez que o novo panorama político do país nos acena para um retrocesso nessas políticas, através de um enfraquecimento da lógica do cuidado territorial em saúde mental e o retorno da aposta em equipes especializadas nos antigos ambulatórios. O forte investimento financeiro em leitos de internação hospitalares e a ampliação das comunidades terapêuticas induzem também ao retorno da lógica do cuidado manicomial e hospitalocêntrico. No entanto percebemos nesse trabalho a potência do cuidado em saúde mental na atenção básica, incluindo as demandas AD, quando esse é conduzido a partir do próprio território onde o usuário está inserido, mantendo seus vínculos, que incluem o com a sua equipe de referência para o cuidado em saúde.

Também não devemos ignorar a necessidade de uma contínua e estreita articulação dos mais diversos setores, seja para a ampliação do acesso dessa população em unidades básicas de saúde, para o fortalecimento dessa rede de atenção e garantia de continuidade do cuidado, e para uma melhor qualificação dos profissionais e de seus processos de trabalho. Considerar o acesso em saúde, e a integralidade na dimensão da continuidade e sustentação do cuidado aos indivíduos, tornando-os assim operadores desse mesmo cuidado faz toda a diferença no processo de trabalho da equipe do Consultório na Rua. É primordial também a garantia do cuidado compartilhado e o constante investimento na intersetorialidade, tendo em vista a complexidade dos agravos e o grau acentuado de demanda dessa população. O cuidado compartilhado e a intersetorialidade são fundamentais para atender às especificidades das demandas da população em situação de rua. A estratégia do cuidado compartilhado implica e responsabiliza variados atores no território. Também cria, fundamentalmente, possibilidades de formação de redes sociais que tenham sustentabilidade, produzam e incentivem, com isso, formas de produção da vida em território mais sinérgicas em relação aos anseios desta população. Anseios estes que podem abranger formas de adequar problemas e situações da melhor forma possível e aprimorar sua qualidade de vida.

Esse trabalho apontou diversas questões que podem tornar-se analisadores a serem explorados posteriormente. É fundamental a realização de outros estudos e a criação de indicadores de avaliação, bem como a formulação e aplicabilidade de políticas públicas de diversos setores que propiciem abordagens flexíveis no atendimento e cuidado a essa população com suas diversas especificidades. É importante também ressaltar que, apesar de um pretenso consenso nos serviços de saúde, a idéia de assistência ainda não contempla, necessariamente, atendimento humanizado dessa população. Para isso, o acolher, o acesso e o vínculo, enquanto prática política e terapêutica precisa fazer parte da agenda em saúde na perspectiva de enxergar o morador em situação de rua como um sujeito de direito, buscando garantir assim os princípios de universalidade, integralidade e equidade no acesso, respaldados pela Constituição de 1988, pela Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (SUS) de 1990.

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