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Do ponto de vista histórico, a prática etnográfica é um exercício ainda muito recente. A obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, publicada em 1922, é considerada o início de uma, digamos assim, etnografia estruturada, com método, com descrições culturais em forma de narrativa. Antes de Malinowski, o que encontramos são relatos de viagem, resenhas superficialmente explicativas, pseudo-reportagens a respeito de exoticidades.

O trabalho de campo, como teorizado nesta dissertação por Clifford Geertz, James Clifford, Bronislaw Malinowski, Franz Boas e Roberto DaMatta, sempre é finalizado no texto do etnógrafo. Ou seja, a cultura está na narrativa. O que desenvolvemos ao longo desta pesquisa foi um movimento interpretativo sobre duas narrativas não ficcionais de Jack London, textos cujas características possuem – defendemos – atributos da etnografia.

O capítulo um teve como escopo relatar, primeiramente, que Jack London já foi objeto de outras pesquisas, principalmente pesquisas sobre sua ficção. A não ficção londoniana – área na qual nos concentramos – também foi investigada, porém por um número reduzido de pesquisadores, de acordo com o que constatamos através de uma revisão da literatura. No capítulo um apresentamos ainda uma contextualização sociocultural dos Estados Unidos durante o período de vida de Jack London, entre os anos de 1876 e 1916: as grandes mudanças da época contribuíram para que o autor desenvolvesse um espírito de desbravamento de territórios estrangeiros, como, por exemplo, o East End de Londres e algumas ilhas do Pacífico. E, para fechar o capítulo introdutório, refizemos um percurso da antropologia, ou seja, uma espécie de genealogia dos principais antropólogos, mostrando como as ciências sociais estavam estruturando-se na virada do século XIX.

O capítulo dois se concentrou no que denominamos de etnografia textual. Fazendo uso da concepção geertziana da antropologia interpretativa, buscamos interpretar as obras O povo do abismo e O cruzeiro do Snark, identificando nelas traços de narrativas etnográficas. A escritura desses textos, por parte de Jack London, aconteceu em um momento cujos preceitos da etnografia não haviam ainda sido estruturalmente organizados. Tal fato eleva o autor como pertencente a uma

espécie de precursor das narrativas etnográficas. De acordo com o referencial teórico, comparamos vários excertos das duas narrativas londonianas com as definições do fazer etnográfico. Pudemos constatar que Jack London, mesmo sem uma intenção cientificamente organizada, em vários momentos praticou o que interpretamos como etnografia.

Em O povo do abismo, organizou em narrativa os cerca de três meses em que permaneceu misturado aos pobres do East End londrino. Sua investigação participante – disfarçou-se de marinheiro desempregado – possibilitou-o fazer uma leitura da realidade sociocultural das pessoas que lá viviam. O lado contraditório é a tendência, em momentos pontuais, de comparar a Inglaterra com os EUA, seu país de origem, dando ênfase a uma suposta superioridade norte-americana no que diz respeito à organização social.

Em O cruzeiro do Snark, Jack London relatou sua viagem de mais ou menos dois anos por várias ilhas e localidades do Oceano Pacífico. Tal investigação foi motivada pelo anseio de exploração da época. Na sua narrativa, aparecem as descrições de vários nativos e seus modos de vida singulares, ditos exóticos. Entre demais territórios, teve a chance de permanecer na ilha dos leprosos de Molokai, desmistificando – através de uma descrição densa – o suposto horror vivido pelos doentes, horror relatado por jornalistas ansiosos e sem um critério de observação legítimo.

No final do capítulo dois, apresentamos a relação entre Jack London e a fotografia etnográfica. Seus registros fotográficos superam o número de 12.000, entre os anos de 1900 e 1916. Selecionamos 29 fotografias – reunidas no livro Jack London, Photographer (2010) – tiradas pelo autor. De acordo com elas, mostramos as intenções etnográficas de Jack London, que, além de narrativas escritas, também se preocupou em construir narrativas visuais.

Nesta pesquisa, assim como acontece com qualquer pesquisa, foi necessário que elegêssemos um recorte bem definido de análise, no caso, duas narrativas não ficcionais de Jack London. Na medida em que a dissertação ganhava peso, foi possível reconhecermos a habilidade intrínseca de Jack London no que se refere a uma adaptabilidade aos ambientes – habilidade substancial para o etnógrafo. Misturando-se aos nativos, fossem eles da urbanidade de Londres ou da exoticidade de ilhas do Pacífico, Jack London estabelecia conexão e, devido a isso, conseguia analisar as culturas vigentes para, depois, transformá-las em narrativa. Seu olhar

mirava o social, o cultural, o econômico, o linguístico, enfim, mirava as diversas regionalidades que compunham as realidades simbólicas dos territórios por ele investigados. Certamente a etnografia, do ponto de vista científico, não teve início com Jack London. Porém foi possível constatarmos que, tanto em O povo do abismo quanto em O cruzeiro do Snark, de acordo com os conceitos da antropologia, há momentos em que as linhas assumem a forma da narrativa etnográfica.

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Acrescentamento em primeira pessoa:

As narrativas ficcionais de Jack London, para mim, surgiram há bastante tempo. Sempre me impressionaram suas descrições aprofundadas sobre a indiferença da natureza, os ambientes inóspitos, a dureza da vida no mar, o estranhamento da vida no gelo, o instinto animal que nada sob nossa pele. A ficção londoniana é membruda, viril, desacomodante. Em determinado momento, encontrei em Jack London também registros não ficcionais. Primeiro, a obra A estrada, que pode ser considerada como um tipo de precursora em relatos de viagem: influenciou muita gente graúda que veio depois, gente como Ernest Hemingway e Jack Kerouac. Após A estrada, garimpei em algum sebo O Povo do abismo e O Cruzeiro do Snark, e aí alguma coisa aconteceu. Ainda que meus conhecimentos, em tal época, não possuíssem os conceitos estruturados da etnografia, eu já intuía que esses dois textos eram diferentes na forma, no estilo, na intenção. Eis que, aos poucos, surgiu uma fagulha para a pesquisa do mestrado. Será que Jack London não andou se exercitando

etnograficamente antes mesmo do surgimento da etnografia?, me perguntei. E assim teve início

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